Respirem fundo, crianças, que a história é um tanto longa e triste:
Demorei muito tempo, mais do que devia, a ter coragem de me apresentar como escritora. Por muito tempo, quando precisava preencher algum cadastro, jogava lá no espaço em branco que vinha depois de “profissão”: jornalista. Afinal, é essa a minha formação e já trabalhei o bastante na área para continuar me considerando como tal. Mas a verdade é que nunca me senti jornalista na alma.
Certa vez, fazendo uma matéria com o já falecido Manuel Brito, ex-dono do JB, sentei para conversar um pouco sobre o meu personagem com Wilson Figueiredo, então um dos melhores colunistas do jornal. A minha tenra idade de estagiária, no entanto, deve ter lhe inspirado um certo comportamento paternal. Quando eu menos esperava, me perguntou por que eu havia escolhido o jornalismo. “Porque gosto de escrever”, respondi imediatamente. “Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra!”, ele rebateu. O tempo passa e voa e ele estava coberto de razão.
Quando me formei, não vou dizer há quantos anos, era cheia de ideais. A minha formatura, aliás, foi das mais lindas e vanguardistas da PUC. Nos formamos em pleno Pilotis, com faixas coloridas ao alto decorando o cenário de nosso
talk show. Organizamos uma rodada de entrevistas com os professores que mais gostávamos e fizemos uma espécie de programa piloto de TV. Nada disso foi filmado, é claro, porque também éramos, ainda, jovens universitários ingênuos e um tanto desligados. Imperdoável descuido. Adoraria rever aquele momento. Talvez assim eu pudesse, de alguma forma, recuperar aquele afã de mudar o mundo através do jornalismo.
Aos poucos, no entanto, entre uma e outra redação, entre uma e outra reportagem, o
talk show idealista foi se desmanchando na minha memória. O embate com a irritante e insistente realidade acabou fazendo com que eu me virasse, tal qual planta buscando a fotossíntese, para a seara editorial. Ali eu enxergava mais o sol e respirava mais ar puro. E, principalmente, ali eu teria condições de ter mais cuidado com o que escrevia. Ao me recusar a continuar vendendo o corpitcho a deadlines perigosos, eu poderia me dar ao luxo de fazer pesquisas decentes e, assim, evitar erros indecentes.
Hoje é com certo alívio que percebo essa guinada. Sou imensamente mais feliz sabendo que escrevi A bela menina e não a reportagem da Isto É dessa semana, com o infeliz título "A princesa do tráfico". Do meu lado do balcão, por exemplo, não vendi nenhuma das seguintes informações:
“Sem mesada suficiente para bancar o vício, ela chegou a tramar o próprio seqüestro para extorquir dinheiro da família”
Quando Ana Karina, a bela menina como vocês já sabem, “tramou o próprio seqüestro”, ela estava sendo convencida por um traficante de drogas dos mais perigosos na época. Gringo tinha mais de cem anos de pena nas costas e gostava de cobrar cachê pelas entrevistas quando era preso. E o dinheiro não era para sustentar o vício. Ana tinha então quinze anos e ainda (ainda) não era viciada. Se tornaria viciada depois do seqüestro, do estupro e de todas as acusações que caíram na sua cabeça adolescente – adolescente, diga-se, que queria era fugir de casa e das confusões da mãe, essa sim já uma dependente química.
“Ana costumava subir os morros de salto alto, usando roupas da grife francesa Dior, uma de suas preferidas. Passou a roubar jóias da família para trocar por drogas."
Se o jornalista tivesse lido o livro, saberia que isso não é verdade. As jóias que viraram pó eram da própria Ana, jóias de família que ela, se não tivesse passando por tanto sofrimento, teria conseguido guardar e passar adiante para as suas filhas. Só por curiosidade, o que o livro diz é o seguinte:
“O cordão era de ouro e trazia penduradas várias medalhas, também de ouro. Havia sido da minha bisavó, e minha avó me dera provavelmente em algum aniversário. Devia esperar que eu continuasse a tradição da família, passando um dia esse colar para a minha filha. Antes disso, muito antes, as medalhas começaram a virar cocaína malhada nas mãos do piscineiro do condomínio. Eram muito vagabundos aqueles papéis, eu devia ter pegado o meu dinheiro de volta quando aprendi a comprar cocaína de verdade. Em pouco tempo, cheirei o cordão inteiro. As coisas já tinham começado a perder o valor.”
Um pouco diferente, não?
Eu podia dizer ainda que Ana não usou heroína e que não tem mais nenhuma lesão no cérebro. Ou que o Gringo não liderava o tráfico do Vidigal. Era uruguaio e não tinha a menor intimidade com os chefões cariocas. Mas pra quê? As tintas são irredutíveis, radicais, irremediáveis.
Perceber que a matéria, no fim, nos leva à conclusão de que Ana foi uma vítima do vício e não um algoz da própria família, infelizmente, não apaga os erros anteriores. E esses são mais alguns deslizes involuntários, vamos dizer assim para sermos bacanas, adicionados à sua nada pequena coleção. Uma pena. O jornalismo com o qual eu sonhava na faculdade era muito melhor.
Para quem quiser acompanhar de perto esse imbróglio, o blog da Ana é
A bela menina do cachorrinho.