quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A passarela trágica de Nietzsche



A vida é uma tragédia, costumava me dizer um antigo chefe. Ele já beirava os cinquenta anos e eu era apenas uma estagiária de vinte, o que fazia com que eu considerasse aquela frase um tanto exagerada ¬– dramática, para usar um termos mais adequado aqui.
Outros vinte anos depois, checo na internet a queda, em pleno horário de rush da Linha Amarela, de uma passarela inteira. Até agora são cinco mortos, quatro feridos e fotos assustadoras propiciadas pela imprudência de um motorista de caminhão que passou por baixo da passarela, em alta velocidade é claro, com a caçamba levantada. O impacto foi suficiente para derrubar toda a estrutura em segundos, bloqueando os dois sentidos da via expressa. O prefeito recomenda que as pessoas evitem sair de casa se precisarem usar essa via porque, nas palavras do próprio, estamos diante de uma tragédia.

De repente, numa manhã que começara normal, com café e um trabalho sobre tragédia grega a escrever pela frente, o peso de vigas de concreto esmagando carros traz à tona a inexorabilidade. Por mais que diariamente tentemos nos desvencilhar da incômoda ideia da fatalidade com os mais variados recursos – espirituais, religiosos, psiquiátricos –, a vida é, sim, uma tragédia.
Foi o Cristianismo, grita Nietzsche, que nos distraiu desse fato, prometendo vida eterna e assim tirando o foco da vida terrena. Passamos a olhar mais para o futuro e para o passado do que para o presente. Olhamos mais para o corpo de Cristo do que para os nossos próprios corpos, desde então sempre culpados e envergonhados.
Suspeito que o filósofo tinha razão. O meu ex-chefe também.

Parece que os gregos sabiam bem o que faziam quando, num momento de exuberância do seu povo, da magnificência de Atenas, centro do mundo no século V, encenavam as mais doídas tragédias. A dor ainda não havia sido apartada da vida. Sofrer com os revezes do destino fazia parte de viver, empreitada que, por isso, não deixava de ser bela. O bem e o mal ainda não liam a Bíblia.
Releio alguns trechos de O Nascimento da Tragédia. Como paralisada pelo trânsito, engarrafada em suas linhas, entendo um pouco melhor a cultura apolínea:

"Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhe dar as costas, desalentado e decepcionado. Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau. E assim é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal, 'pairando em doce sensualidade', da própria existência deles."

Continuo a busca na via expressa nietzschiana e enxergo o substrato dessa cultura. De certa forma, podemos dizer que é o susto. Quando passarelas ainda não despencavam simplesmente porque ainda não existiam, reza a lenda que o Rei Midas perguntou ao daimon Silesio, espírito intermediário entre mortais e deuses e companheiro de Dionisio, qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Em vão tentou o demônio (daimon) não responder: "Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria pra ti mais salutar não ouvir?". Diante da insistência do Rei, no entanto, despejou o golpe: o melhor mesmo para o homem era não ter nascido, era nada ser. Uma vez vivo, o melhor para ele era morrer.
Como lidar com um mito desses? Com beleza e medida apolínea aproximadas ao arrebatamento dionisíaco, identifica Nietzsche, encontrando na tragédia grega o exemplo dessa mistura. Eram os gregos construindo passarelas entre homens e deuses.

"O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos. Aquela inaudita desconfiança ante os poderes titânicos da natureza, aquela Moira (destino) a reinar impiedosa sobre todos os conhecimentos, aquele abutre a roer o grande amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do sagaz Édipo, aquela maldição sobre a estirpe dos Átridas, que obriga Orestes ao matricídio, em suma, toda aquela filosofia do deus silvano, juntamente com seus míticos exemplos, à qual sucumbiram os sombrios etruscos –, foi, através daquele artístico mundo intermédio dos Olímpicos, constantemente sobrepujado de novo pelos gregos ou, pelo menos, encoberto e subtraído ao olhar. Para poderem viver, tiveram os gregos, levados pela mais profunda necessidade, de criar tais deuses, cujo advento devemos assim de fato nos representar, de modo que, da primitiva teogonia titânica dos terrores, se desenvolvesse, em morosas transições, a teogonia olímpica do júbilo, por meio do impulso apolíneo da beleza – como rosas a desabrochar da moita espinhosa."


É dessa mitologia religiosa e cívica que surge a tragédia, sempre ligada originariamente aos deuses. Até a Idade Média, religião e arte andavam juntas. O divino oferece ao homem não uma promessa de futuro e salvação, mas uma revelação do seu ser.
Para Nietzsche, as fontes primeiras da tragédia são puramente religiosas e não políticas. Aristóteles discordaria lembrando que a tragédia tinha sim um sentido político e só existiu enquanto perdurou a democracia. Christian Meyer reforçaria ainda a tese afirmando que a tragédia era um ato cívico. No entanto, por mais que pareça difícil desfazer o vínculo entre tragédia grega e política, nossa passarela aqui, com alguma licença poética, é carioca e nietzschiana. Além disso, a religião grega não era dogmática e sim ética, o que faz da origem religiosa da tragédia, de certa forma, um registro também político.
Para Nietzsche, o coro trágico é a própria expressão da voz de Dionisio, associado, por sua vez, à dimensão originária e primordial. A tragédia grega em si teria uma natureza inconsciente ligada aos mais obscuros instintos vitais. Arte e vida se confundem por terem um fundo originário comum, sintonizadas com a tensão entre Apolo e Dionisio; na tragédia, Apolo dá expressão verbal à Dionisio.
Na trama trágica, a música do coro é uma das manifestações dessa "parceria" que ocorre especialmente na voz da multidão "embriagada" e identificada com o poeta lírico que, enquanto artista dionisíaco, é um só com o Uno primordial. Esse é, para Nietzsche, o papel do coro na tragédia grega: a personificação do deus Dionisio. É assim que, junto com Apolo, ele cumpre o papel de expressar a tragicidade imposta pela vida.

"Atento ao dia final, homem nenhum afirme: eu sou feliz!, até transpor – sem nunca ter sofrido – o umbral da morte.", diz o coro ao final da tragédia Édipo-Rei, de Sófocles.

Só o divino tem o controle do fim da ação humana, sabiam os gregos. Também sabiam ser a ação humana cega e impenetrável nas suas últimas consequências. O indivíduo é, essencialmente, um ser trágico.
Mesmo as passarelas de concreto desmoronam.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Disposição privilegiada da angústia: ver o Mundo com letra maiúscula.