quinta-feira, 8 de maio de 2014



Carta aberta ao professor Edgar Lyra


"O mundo não gira ao redor do umbigo de vocês", disse o coordenador segundos antes das minhas pernas, compulsivamente, se retirarem da sala. Tenho pernas muito críticas e hoje, aos 39 anos, só vou onde elas mandam. Há pouco mais de um ano elas me mandaram de volta para a PUC, onde me formei em Jornalismo no longínquo ano de 1996. Voltei, como boa filha à casa, para cursar uma pós-graduação em arte e filosofia. No meio do caminho houve um mestrado em comunicação, mas isso foi antes de descobrir que só a filosofia salva.

Fiz muito esforço para ir àquela aula, especificamente. Esperei a babá que se atrasou, peguei mais de uma hora de trânsito, estacionei longe da faculdade e andei muito para quem havia torcido feio o pé há poucos dias ¬– meus pés também são muito rebeldes às vezes.
Eu jamais havia saído de sala assim, nesse ímpeto de revolta. Um dia depois, refeita da raiva que acabou em insônia, parei calmamente para pensar no meu umbigo. Vejamos: meu umbigo já alimentou outro umbigo que completa dois anos no sábado. Já estudou o suficiente para saber que nunca se estuda o suficiente e publicou alguns livros. Considerando ser um umbigo razoavelmente experiente, portanto, pensei que não merecia uma reprimenda dessas, provavelmente endereçada semestralmente aos alunos de graduação em filosofia coordenados pelo Mestre Edgar, dublê, naquele dia, de coordenador da Pós.

Mas pensemos: se levarmos adiante os estudos de Merleau-Ponty, por exemplo, sobre a fenomenologia da percepção, veremos que não há a menor, nem mesmo a ínfima possibilidade, de fugirmos do nosso umbigo na hora de olhar para o mundo. Ao ler Merleau-Ponty, aliás, senti ganhar passos mais largos, embora ainda desengonçados como os de uma criança. A realidade finalmente aparecia como algo a ser visto de fato, onde as coisas dialogam entre si. De certa forma, foi um alívio encontrar em Ponty uma realidade sensível que, ao contrário do que dizem os mui modernos, existe. Enfim um retorno às coisas mesmas, a uma calçada que está dada, um chão pisado por todos sem tantos enganos – ou tropeços – dos sentidos. A origem da verdade, pasmem, pode sim estar na percepção.

Então, caro Edgar, preciso discordar: o mundo gira, sim, ao redor do meu umbigo. E é ele, o meu umbigo, que me garante que não há nada de errado em reclamar de um professor incompetente. Tenho ótimas lembranças da minha época de faculdade, mas também lembro de ter tido péssimos professores. Péssimos, ruinzinhos mesmo, daqueles que causam vergonha alheia. Nos intervalos das aulas, sentados de pernas cruzadas e encostados nos pilotis, pensávamos às vezes em reclamar. Mas tínhamos mais o que fazer. Sim, chopadas, como você deve ter pensado, mas também tínhamos estágio, processos de seleção e a luta pela vida profissional lá fora. Éramos umbigos muito ocupados.

Eu me arrependo. Se tivéssemos reclamado na época, talvez os umbigos que chegaram depois de nós tivessem se beneficiado. Uma pena.

Sim, o mundo gira ao redor dos nossos umbigos e, felizmente, da sua capacidade crítica e reflexiva. É isso o que nos torna alunos, esses seres que aprendem, quando a aula é boa, que o essencial do homem não é o humano, mas sua relação com o mundo. É na incapacidade de dividir o senciente do sentido que acontece a visão, e isso mesmo quando olhamos uma simples sala de aula polvilhada de preconceitos.