quinta-feira, 29 de abril de 2010

Aiô, Silver!

É emocionante viver no faroeste. Você pode sair de carro de manhã e, ao contornar a praça de sempre, perceber uma movimentação diferente alguns metros à frente causando, é claro, um pequeno trânsito. Então você reduz a marcha, entre curiosa e levemente irritada, diminui o volume do rádio como se isso fosse fazer alguma diferença, olha comprido por trás dos óculos escuros ainda sonolentos e avista... um carro do Redbull. Sim, aquele energético que te dá asas. Você tira os óculos, esfrega os olhos e vê um carro promocional parado em plena agulha, com uma lata gigante chamando a atenção de todos e, claaro, uma bonitona de saia quase inexistente e decote até o umbigo chamando mais atenção ainda.

A cena, que dúvida, é suficiente para dragar todos os sentidos de todos os seres regidos pela testosterona que contornavam ingenuamente a pracinha tão bucólica. E quando você acaba de perceber então o motivo do trânsito e começa a digerir a cena confusa e um tanto aviltante para os seres não dominados pela testosterona, você olha para o lado e vê um carro atravessando o sinal vermelho. Olha de novo, ainda aturdida, e vê que aquele não era o Redbull ganhando asas, era simplesmente um carro da...polícia.

E o dia estava apenas começando no faroeste.

terça-feira, 20 de abril de 2010

No meu ou no seu café?



O meu marido, que é roteirista, só escreve em cafés. Eu, acostumada a ficar enfiada no escritório com os meus cansados e solitários miolos, achava isso muito estranho. Como alguém pode se concentrar em meio a tanta conversa alheia, gente? Pois às vezes são justamente as conversas alheias, me explicou o roteirista em questão, que salvam o vácuo de algum diálogo ou o furo de algum perfil de personagem. Bem diz o documentarista Eduardo Coutinho: a vida real é bem mais interessante do que a ficção.

Depois que passou a estranheza ao hábito, comecei a achar muito charmoso escrever em café. Muito parisiense isso, muito Baudelaire. Tentei algumas vezes, mas o problema é que meus dedos, imantados já ao teclado, esqueceram como é que se escreve à mão e me apresentam garranchos sofridos e na maioria das vezes indecifráveis. Pensei então em comprar um netbook, daqueles pequenininhos, só para escrever de vez em quando em companhia. É claro que depois de ver os preços desses brinquedinhos desisti e voltei para a toca da loba.

Até que finalmente descobri o que posso fazer, e muito, nos cafés. Posso ler longos depoimentos. Looongos. Posso fichá-los entre um expresso e outro e assim evitar o sono e as cabeçadas que às vezes acontecem quando as páginas estão lá no escritório, quietinhas, soprando suavemente nos meus ouvidos: “Isso dá um sooono...”

Ahá! Agora também sou chique, cambada. Leio muito em cafés. Não consigo fazer isso o dia inteiro porque as costas reclamam mas já dá para mandar os neurônios circularem um cadinho. E aqui lembro da minha dissertação de mestrado que, em determinado momento, ao refletir sobre a autoria, resgata a figura do ator público, muito bem definida por Sennett. Aí vai de brinde pra vocês:

“Na medida em que domina uma multidão de espectadores silenciosos, o ator público, lembra Sennett, é enganosamente uma figura simples:

‘Os espectadores silenciosos precisavam ver no ator público certos traços de sua personalidade, quer ele a possuísse, quer não. Fantasiosamente investiam nele aquilo que na realidade poderia lhe faltar. (...) a imagem da dominação sugere que sem o ator não pode haver espectador. Mas o observador silencioso permanece no público, mesmo quando não há qualquer personalidade sobre a qual se concentrar. As necessidades projetadas no ator se transmutam então: os espectadores se tornam voyeurs. Movimentam-se em silêncio, na proteção que os isola uns dos outros, desafogando-se através da fantasia e do devaneio, observando a vida passar pelas ruas. As pinturas de Degas sobre a pessoa silenciosa e sozinha num café apreendem a qualidade da sua vida. E aqui se encontra em germe a cena moderna da visibilidade em público, apesar do isolamento interpessoal’”


That´s all folks. O feriado está chegando e os cafés andam muito convidativos. Carreguem seus livros.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Aqui ou em Paraty





Um dos livros que estou produzindo, vocês seis já sabem, é sobre a Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, escola de formação de oficiais do exército. É a história de um tenente que passou por todas as agruras do curso conhecido por, entre outras coisas como causar a morte de alguns cadetes durante exercícios sobre-humanos, ter inspirado o treinamento do Bope. Sem as aulas de tortura, diga-se.

Muito bem. Quando conversei com o biografado em questão, meus dentes caninos de jornalista cresceram e eu queria sangue. Queria publicar todos os podres de bastidores, todas as atrocidades cometidas nos trotes feitos com os “bichos”, todos os sofrimentos impostos aos pobres dos cadetes. O biografado, no entanto, muito metódico é claro, já tinha um sumário pronto. Sabia exatamente o que queria contar – hello, crianças, o cara é um militar.

Lembrei então que aquele era um trabalho de encomenda, olhei a minha conta bancária, respirei fundo e fiz o que faço de melhor: escutei. Escutei, escutei, escutei e escutei mais um pouquinho. Quando senti que os ouvidos já estavam mais do que atentos, me permiti afiar as perguntas e os questionamentos. E hoje, depoimentos praticamente prontos nas mãos, fico rindo sozinha relendo as entrevistas. São longas conversas de um ET tentando convencer uma Alien orelhuda de que o seu mundo é sim viável, ao menos na teoria. Na prática a teoria é outra, mas isso não tira o caráter nobre da disciplina, dos valores morais e éticos que sim, existem no mundo onde regras são respeitadas.

“Na sociedade de hoje, quem faz o certo é visto como bobão”, diz o tenente desiludido. E ele não deixa de ter razão. Não à toa, o mundo da Aman é muitas vezes definido como uma bolha, ambiente excluído da “vida lá fora”, espaço onde as crenças têm fronteiras: quando elas escorregam para fora dos belos portões da academia de Rezende, batem de frente com um mundo tão inóspito quanto o território inimigo. “Então você se choca muito com a realidade”, explica o tenente.

A boa e velha divisão do mundo de lá e do mundo de cá, etnocentrismo radical e inevitável. Nem em Paraty, onde passei a semana santa, consegui desviar desse desfiladeiro intrínseco à humanidade. Estava eu curtindo o centro histórico, tropeçando de cinco em cinco minutos no calçamento pé-de- moleque, quando me deparei com o sujeito aí das fotos. Calça de juta, corrente na mão, o escravo encenava um bem construído monólogo em cima de uma pedra. Explicava aos turistas incautos que aquela era uma cidade feita com o suor dos escravos, inclusive crianças escravas, e que seus casarões e igrejas trazem misteriosos símbolos maçônicos. Contou que a cidade, fundada em 1667 em torno da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, aquela mesma que crescia atrás de suas costas doídas, não possuía rede de esgoto, sendo periodicamente “lavada” pela água do mar quando a maré subia e alagava as ruas. Daí todos os sobrados serem construídos com mais de um metro de distância em relação ao solo. Quando a maré subia, o centro se tornava uma Veneza dos trópicos e os caiçaras atravessavam as ruas de canoa.E com os narizes tampados, provavelmente.

Depois de contar também a história da igreja de Santa Rita e lembrar de toda pedraria e todo o ouro que passavam pelo porto de Paraty no século XVIII, o escravo terminou sua apresentação dizendo já estar há um ano e cento e cinqüenta dias naquela pedra e que a cultura afro-brasileira, para ser verdadeiramente livre, precisa ainda aprender a lidar com o passado. Logo em seguida, sorriso largo, começou a atender os pedidos de turistas interessados em tirar fotos com ele. “Já são cerca de cem mil fotos pelo mundo”, ele dizia, simpático. Mas quando uma mulher tentou dirigir a foto, dizendo que ele não precisava não colocar as correntes ao redor dos punhos dela, tascou logo: “Aqui quem manda sou eu, sinhazinha”.

Anderson Mota da Silva tem 28 anos e é, nas suas corretas e afiadas palavras, “a primeira estátua viva de escravo no Brasil”. Decidiu arcar com o título depois de pesquisar as estátuas vivas já criadas até hoje e perceber que nenhuma delas era de um escravo. Então um dia se olhou de cima a baixo no espelho e decidiu: a estátua que faltava estava bem ali.

Tudo isso já seria muito interessante só que tem mais:
O que Anderson fazia antes de passar o chapéu de escravo moído? Anderson, pasmem, era sargento. Instrutor da Aman. “Aqueles cadetes sofreram muito na minha mão”, ele contou rindo. E largou um emprego tão seguro por que, Anderson? “Porque lá a gente fica muito afastado da realidade”.

Céus. Fui correndo beber uma caipirinha.

Galeria








Um livre ensaio de fotos pra vocês:

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Já volto

Assim que eu conseguir um bote para voltar ao Rio conto tudo sobre Paraty. Empunhem seus remos, meninos.