quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Ontem e hoje


Ainda da série Poesias da infância:


Meu mundo é de magia, agora que só as vozes dos ecos, das músicas, se elevam no silêncio.
Danço no ar, sustentada pela magia, suave como ela só.
Quando quero vou até o fim dos mares, vendo o impossível hoje em dia. E uma ventania me carrega e me ilude com sinos doces.
Ouço barulho de borbulhas, como se estivesse me afogando. Mas me afogando na magia.
Uma música alta me faz ir por um caminho tão longo, mas que se foi tão rápido. É uma pena.
Esse caminho foi lindo, e ainda é: o simples caminho para o sonho.

1986.


Não, senhores, eu não fumava maconha. Lembrem-se, eu tinha onze anos e vivia no meio do mato. Eu apenas acreditava com todas as minhas forças no sonho.

Ainda acredito nele, mas agora sinto melhor o chão que insiste em se colocar sob meus pés. E se vocês querem saber é bom senti-lo, sujar as solas com terra e poder, ao mesmo tempo, olhar para o céu.

Que todos os dias de 2009 tenham um quê de magia, aquela que nos faz lembrar porque respiramos juntos neste mundinho. A mesma que nos encanta, nos enleva e nos faz seguir nossos caminhos verdadeiros. E que também é chamada de vida, vez ou outra.

Feliz 2009, cambada!!!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Pero que las hay, las hay

Fazia tempo que ela andava sobrevoando nossas cabeças. Ela ficava lá, por cima das nuvens, taxiando, esperando uma brecha para descer em vôo livre. Muito bem. Ela, a bruxa, veio com tudo. Desceu em parafuso, exercitando seu know-how diplomado em direção perigosa. Chegou, bateu a poeira da barra da saia e estacionou o nariz enverrugado e a vassoura em algum lugar aqui perto de casa. E logo foi um tal de um interna pra cá, outro opera pra lá, outra ensaia o adeus ao mundo profano. Ho ho ho, feliz natal.
Então estava eu, ontem, encostada na murada de um hospital de Santa Teresa, ladeada por dois macaquinhos, um primo deprimido e uma Baía de Guanabara de tirar o fôlego. Enquanto eu ouvia o telegrama que a bruxa enviara, não conseguia parar de pensar em como aquela vista é bonita. Ali, naquele espelho d´água, as vassouras não passam de sombras. Elas podem até crepitar a superfície, mas o fundo do mar é feito de paz, silêncio e fé. Acontece que a gente olha só de cima, num só ângulo, e perde de vista as outras camadas.
Deve ser por isso que sou tão disciplinada no aprendizado da Shirshasana, a invertida sobre a cabeça, postura da ioga em que se fica de cabeça para baixo, literalmente. Ainda não cheguei lá, mas tenho certeza de que quando eu conseguir vai ser uma epifania só. Se bobear, vou ver até macaquinhos saltitando.
Quero mais é conseguir ver as coisas de forma diferente, mirando o nível do mar. Namastê.
Sim, e boas festas a todos. Maneirem nas castanhas.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Salvem o Jotalhão



Mamãe mexeu no meu armário. É sempre um perigo quando as mães mexem no nosso armário. Mas estou falando de um armário de quarto antigo, que visito de vez em quando sem prestar muita atenção nas recordações infantis. Eu vinha protelando a investigação desse móvel porque precisaria de dias inteiros para viajar por aquele mundo de papéis de cartas, agendas gordas de tanta colagem e cartões, cartinhas, promessas de amor eterno e bilhetinhos assim: “Marcelo, você quer casar comigo?” A pergunta vinha acompanhada de um quadradinho onde se poderia marcar um X caso a resposta fosse Sim e outro quadradinho para o Não. Embaixo deles, uma linha pontilhada guardava espaço para a assinatura do pretendente. Como posso mexer em prateleiras dessas sem tempo para parar tudo, fechar os olhos e relembrar todas as sensações que esse tempo mágico trazia?
Pois é. Então a minha mãe mexeu por mim. O objetivo era achar um caderno de poesias antigo para mostrar ao meu sobrinho, que arrisca agora seus primeiros versos. Na minha memória, a capa do caderno era do Horácio, aquele dinossauro verde. Eis que, na verdade, a capa é do Jotalhão. Ok, um elefante não tem nada a ver com um dinossauro, mas o que importa é que os dois são verdes. A minha memória é cromática, fazer o quê?
Descobri várias coisas relendo esse caderno. Uma delas é que eu escrevia até direitinho para uma pirralha de dez, onze anos, que só entrou no colégio aos seis porque queria aprender a escrever. Brincar eu podia brincar em casa, eu dizia, e corria para os meus patos, pintinhos, porquinhos da índia, coelhos. Mas descobri também que eu era uma pirralha bem atormentada. Vejamos:

Eu vi, sou testemunha.
Lá no mar, junto com a gaivota barulhenta, que sobrevoava as ondas que batiam nas pedras.
Eu vi, sou testemunha.
Um homem andava pela areia arrastando as correntes de um barco, encontrado ali não se sabe como. Gastando todos os seus esforços para consertá-lo, a fim de fugir da guerra que ali haveria.
Mas de repente um avião, mais para um furacão, acabou com tudo. E esse homem morreu junto com as suas esperanças.
E as lembranças do passado, agora, trituradas pela guerra.
Eu vi, sou testemunha.

1986.

Das duas uma: ou eu era muito angustiada ou meu irmão andava vendo muitos filmes de guerra.
Ou ainda a gente cresce e aprende a esconder debaixo do tapete as preocupações que realmente interessam.


segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

CVVOT

Acho a secretária eletrônica a melhor invenção dos últimos tempos. Ela é simplesmente perfeita. Não tem mau humor, não cobra salário nem 13º, não julga seus horários e ainda por cima passa os recados direitinho, sem que você precise estudar grafologia para entender os bilhetes capengas deixados na geladeira. Como trabalho em casa e escrevendo, pra mim ela tem uma vantagem a mais: não preciso atender telefone! Aliás, há alguns anos não atendo telefone quando estou escrevendo. Os parentes e amigos já sacaram, o que faz com que volta e meia o celular em vibracall rebole na mesa.
Ah, sim, e tenho ainda mais um motivo fortíssimo para não atender telefone. Quando nos mudamos aqui para o faroeste, herdamos um número de telefone que era de uma... cooperativa de táxi! “É do táxi?” virou uma pergunta recorrente do outro lado da linha, especialmente em dias de chuva. Na época, meu sangue cidadão me impediu de pagar 70 reais para que a Telemar consertasse o seu próprio erro, o de passar um telefone comercial para uma residência. Mandei carta para o jornal e tudo, mas não teve jeito. Com as brechas das leis as empresas podem tudo, principalmente te fazer de otário. E eu não daria mais nem um centavo para aquela corja. Vip’ s Táxi, lá fomos nós. Até hoje ligam. Eu desligo praticamente na cara, o meu marido ainda tem a pachorra de dizer que não, ele não sabe o número novo da cooperativa, desculpe. Também tem aqueles que deixam recado, “Oi, eu queria pedir um táxi aqui para a rua Armando Lombardi...”. Agora pelamordedeus me digam, como pode alguém na face da terra achar que uma empresa de táxi trabalharia com uma secretária eletrônica?
Mas o fato é que hoje, quando o telefone tocou à tardinha, eu estava zen.
“Alô”. Silêncio. Esse é o pior dos prenúncios. Quando demoram para falar do outro lado e você escuta um certo clique de ligação transferida, já era. É telemarketing na certa. “Por favor, a senhora Carla?” Neste ponto eu respiro fundo e recito mentalmente alguns mantras. “É ela, quem está falando?”, pergunto logo. “É da Rede Makro de supermercados”. Caraca. Já não basta os cartões de crédito, agora também os supermercados? O que é agora, vão querer me vender carne por telefone? “Ah, tá bom, eu não estou interessada em nenhum produto, obrigada”, disse, já desligando. (Eu poderia ser bem mais antipática, queridos, vocês não viram nada.) Segundos depois, o telefone toca de novo. Ponho o fone no ouvido e ouço, numa voz sussurrante e ameaçadora: “Idiota!”. Taquicardia. Era só o que me faltava, nesse final de ano: remorsos pela vida infeliz de uma operadora de telemarketing. E se ela me rogar uma praga? E se ela tiver meu endereço e começar a me seguir, com uma carne congelada nas mãos? (Quem lê Hitchcock sabe que dá pra morrer com uma dessas na cabeça, com a vantagem da arma do crime sumir depois de um bom prato de carne assada... não é de arrepiar, crianças?). Meu Deus, o que eu faço?
Resolvi ligar para a Makro. No mínimo, para fazer uma reclamação com a gerência. Estou até agora tentando. Só dá ocupado. Quem sabe não consigo antes de 2009?
Na dúvida, fiz a resolução mais importante para o próximo ano: recuperar hábitos antigos como não atender o telefone e propor, para alguma ONG, uma espécie de CVV para operadores de telemarketing. Seria mais ou menos assim: você, que não quer ser importunado por essas ligações, se cadastraria nessa ONG. Quando você recebesse a ligação, ela seria imediatamente transferida para a Central de Valorização da Vida dos Operadores de Telemarketing, o CVVOT. Nesta central, voluntários treinados teriam toda a paciência do mundo para ouvir as queixas dos operadores e os demoverem da idéia de matarem seus clientes com grandes pedaços de carne congelada. Não seria mais feliz a vida?
Tudo de bom pra vocês também.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Escarafunchos ao sol

Foi ali, no Pepê. Depois de uma bela caminhada, entre uma mordida no pastel e um gole de água de coco. Entre um pombo atento às migalhas da mesa de madeira vazia em frente, um vendedor de bijuterias à direita, um quarteto de adolescentes emudecidas pelo tédio à esquerda, mar, areia e vôlei de praia como testemunhas. Ali, num instante, percebi o óbvio, o que costuma ser muito difícil.
Tive a certeza de que a vida é puro movimento, de que nada pára mesmo, de que estamos sempre em irritante e constante mudança. E então, por causa do filme da véspera, no qual uma das personagens era fotógrafa (sim, o filme novo do Woody Allen), lembrei do curso de fotografia que fiz na adolescência. Eu adorava as minhas fotos em PB e o conforto do escurinho do laboratório. Enquanto a foto dançava ainda diáfana no líquido mágico, a sensação era de estar trazendo o passado para o presente. Ele vinha devagar, meio borrado, e aos poucos ia se firmando no papel. Quando a imagem se revelava, estava lá, nítido, o grande lance: o momento vivido de volta, não imortal, mas vivo, o que vale muito mais. Era uma maneira de segurar a onda, de organizar o caos, de mentir para si mesmo que o tempo não é assim tão arredio, que ele se presta a uma moldura vez ou outra e que, por isso, é de certa forma controlável. Um alívio no lusco-fusco da angústia. Bobinha.
Os anos se passaram, o tempo rugiu, as imagens amarelaram e deixei a fotografia pra lá. Se vocês querem saber, hoje mal sei usar a máquina digital do meu marido. Também larguei o violão, o sapateado e qualquer outra via de manifestação artística. Escolhi o jornalismo e quase larguei o texto também, mas por algum motivo ele, o texto, foi mais forte do que eu. Foi só e tanto o que me restou. E trouxe com ele outras angústias, ui, as angústias de quem escreve e acha que não merece respirar nem mais um minuto se não emplacar logo uma obra-prima, se não encontrar um Tema, se não vislumbrar o Grande Caminho Criativo. Qual a razão de tanto trabalho, afinal, se não chegarmos lá?
Então engoli o pastel e o Grande Romance ou Coisa Parecida desceu junto. Entendi tudo. Eu, escritora de aluguel com muito orgulho, poderia também dizer que sou uma espécie de fotógrafa de textos. Eu fotografo histórias, registro seus melhores e piores momentos, revelo cenas marcantes, emolduro memórias. Elas chegam pra mim como grandes pretextos, e tudo que preciso fazer é clicá-las. E eu adoro clicá-las. É como se o tempo me desse uma colher de chá de novo. É como se o destino desse uma trégua para o arbítrio, me levasse pela mão até o laboratório e me ajudasse a pendurar, uma a uma, as fotos dos outros que também contam a minha vida, de certa forma. Acho que esse é o meu Tema, esse é o meu Grande Caminho que também poderia, facilmente, ser chamado de Caminhada no Calçadão. Tem menos glamour, eu sei, mas o que vocês queriam de alguém que cresceu praticamente no mato, andando descalça na lama e brincando com besouros e formigas?
Quando o pombo voou, as adolescentes falaram e o cara das bijuterias seguiu seu Rumo, saí do transe e prometi para mim mesma que vou caminhar mais vezes. E talvez eu também volte a sapatear qualquer dia desses.
O violão não dá. Eu era desafinada de dar dó.