quinta-feira, 31 de julho de 2014

A poesia, na verdade, é bruta. Está nos fatos e machuca. Está na farpa e na harpa, no vinho e no leite ninho, sozinho. Na lata mesmo tem poesia em pó. Dissolvida em água, escorrega para o estômago e fermenta em prosa. Na bancada toda da cozinha tem poesia. Ali mesmo, perto da carne crua e das facas. No sal e na pimenta. Em tudo, tudo mesmo. A poesia é mais onipresente do que Deus. Aliás, se Deus existe, é porque foi escrito por ela.
O problema, já lembrava Nietzsche, é que nos tornamos péssimos poetas.

quarta-feira, 23 de julho de 2014


Fim de Copa

A Copa do Mundo, para o espanto de todos, acabou. Não fui às ruas, é verdade, mas ouvi poucas vuvuzelas e posso quase jurar ter visto mais gringos do que brasileiros com a camisa do Brasil. Pode ter sido só impressão mas, depois da final melancólica contra a Alemanha, impressão parece ser tudo o que temos.

Vivemos, nesse jogo trágico do 7 X 1, o duelo entre a técnica e a emoção, e não escrevo isso com um chope ao lado numa mesa de bar. Mais uma vez, como tantas, o brasileiro apostou na raça, na gana, na força do peito e no sentimento na hora de decidir um jogo que, por incrível que pareça, depende de muita técnica. De novo o brasileiro apostou todas as fichas no emocional e, com preguiça de fazer o dever de casa, costurou de véspera o pensamento mágico de que a vitória viria. Afinal, nós somos brasileiros e merecemos. Tudo sempre se resolve. Deus é verde e amarelo e vai dar tudo certo.

Essa não é uma crônica esportiva, é claro. No entanto, não consegui parar de pensar na depressiva final de Copa que tivemos quando comecei a ler Do Belo Musical: Um Contributo para a Revisão da Estética da Arte dos Sons, de Eduard Hanslick. De uma clareza lógica desconcertante, as chamadas do crítico musical austríaco, feitas ainda no século XIX, reverberam potentes agora, em 2014, num ano que talvez, apenas talvez, comece agora. A Copa do Mundo terminou, e terminou com algum trauma. Foi-se com ela não só a taça, mas também a crença na força onipresente da emoção. Sentimento não ganha jogo, aprendemos na marra. Nem define a música. Hanslick, se tivesse conhecido Felipão, talvez lhe tivesse dado bons conselhos. Emoção não deve ser a língua da música, e o futebol deveria seguir o exemplo. Fim da partida.

Em nossos argumentos não recorremos à analogia à toa, lembra o filósofo Merleau-Ponty: é o mesmo mundo que contém nossos corpos e nossos espíritos. Já o que a música e o futebol têm em comum é o mesmo que um determinado acorde compartilha com o sentimento de amor, raiva ou compaixão: nada. A música, ao contrário do que muita gente pensa até hoje, e me incluía nesse time, não transmite sentimento algum. Somos nós, eureca, que acrescentamos ao seu movimento (aí sim, algo de aparentado ao sentir) uma determinada emoção, dependendo do humor do dia e da civilização de cada ouvido (também no pensar e sentir há tradição). Parece óbvio, mas o óbvio, que o diga a seleção brasileira, às vezes é muito difícil de enxergar.

Música é arte autônoma, e suscitar sentimentos pode ser o seu conteúdo, mas nunca o seu fim. A fantasia é o órgão genuíno do belo. A atuação exclusiva do entendimento por meio do belo, ataca Hanslick, chega a ser patológica.
A música age. Ela troveja, sussurra e pode ser dramática como no tema do segundo final de Os Huguenotes, cita o autor, mas somos nós que colocamos sentimentos nessas ações. O símbolo é sempre diferente do conteúdo. "A peça sonora flui da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte" , diz o crítico.

"Toda a verdadeira obra de arte se estabelecerá numa qualquer relação com o nosso sentir, mas nenhuma numa relação exclusiva. Por conseguinte, nada de decisivo se afirma acerca do princípio estético da música quando esta é caracterizada mediante o seu efeito no sentimento."


Eis o pensamento moderno esbarrando na música. Aprendemos com Descartes que sentir é pensar, e pensar é algo que fazemos de mãos dadas com o mundo. A realidade é mesmo histórica e a música não se dissolve com qualquer conteúdo. Ela é o conteúdo. O belo musical, arte da música, é autônomo e especificamente musical, ensina Hanslick. Ele, o belo musical, não fala o idioma do mundo, tampouco o do futebol. Como toda arte, ele parte do sensível e nele se tece. As fronteiras do seu conteúdo espiritual demarcam, exclusivamente, o que é musical e que está fora, portanto, do conteúdo real e histórico onde transitam conceitos, representações e... sentimentos.

O que a música pode representar são as ideias, conceitos vivificados, conteúdos da encarnação artística. Para tanto ela encarna o movimento dos estados de ânimo, o pulsar dos sentimentos e do humor. Como toda atividade artística, a música individualiza ideias gerais, mas é espírito que se configura a partir de dentro.


"A fantasia não é, naturalmente, um âmbito fechado: assim como extraiu a sua centelha vital das percepções sensíveis, assim envia, por seu turno, rapidamente os seus raios à atividade do entendimento e do sentimento. No entanto, estes são para a genuína concepção do belo apenas campos limítrofes."


"Descrever com sons um sentimento é ridículo", reafirma Hanslick.
Tentar ganhar um jogo só com a garra e a coragem também.
Desvalorizamos com isso o sentimento? É evidente que não. Apenas entendemos que o efeito da música sobre o sentimento nunca poderia, como aconteceu até Hanslick, fundamentar um princípio estético.
"De fato, uma ópera em que a música se emprega sempre e apenas como meio da expressão dramática é um absurdo musical.", sentencia o autor. A música, que até então era usada para "imitar" determinados sentimentos, sendo considerada legítima somente quando bem-sucedida nesse intento, já era livre e despreocupada com o timbre da compaixão, do amor ou do ressentimento, simplesmente porque eles não existem.
Da arquibancada, xingando ou ovacionando, a torcida não muda o placar do jogo. Fim de Copa.


P.S Para quem se interessar pelo livro, que só conheci por causa da minha pós-graduação: ele pode ser lido em pdf no link abaixo!

Do Belo Musical