sexta-feira, 10 de novembro de 2017

(Mal-entendidos do corpo. Adriana Varejão)


Equívocos, carimbos e humanimalidades

Isso pode parecer confuso para além do título. Não tem início nem meio nem fim e ainda por cima começa sei lá porque com um carimbo, com aquele momento em que a tinta se encontra violentamente com o papel. Não tentem entender, concordar, discordar, curtir ou dar uma opinião. É que ando carente de carimbos, só isso, preciso de um encontro com eles mesmo que seja a tapas.
Tenho arrepios de prazer só de pensar naquela esponja molhada, maciez escorregada no baque seco e surdo da madeira, intersecção de texturas e textos, ponte entre o real e o simbólico. Essa ponte existe de verdade, não estou inventando, dá pra ver de vez em quando, num relance, coisa rápida, mas dá. Estou com saudades dela, sem ela a vida fica estranha, palavra sem dicionário, sapato sem sola, xícara sem asa, e isso parece mais uma letra da Adriana Calcanhoto, como todo respeito a ela, que sabe que nada ficou no lugar.

Faz alguns meses que espero por um carimbo, o que me deu tempo pra pensar nisso tudo. Li algumas coisas nesse intervalo. Peguei o Giorgio Agamben, o que é sempre um bom começo. Ou fim, não sei. Em O Aberto, ele fala sobre a diferença, não tão simples quanto parece, entre o homem e o animal. O animal, esse que parece tão diferente do homem, tem o caráter de não-ter-que-ver. Seu ente, seu ser, é aberto para uma opacidade.

Por isso uma traça, essa que também gosta de papel, caminha para o fogo mesmo sabendo que vai se queimar. Seu conhecimento, como o conhecimento místico, lembra o filósofo italiano, é a experiência de um inconhecimento e de um velamento enquanto tal. A pobreza de mundo, a cegueira que o cerca, é característica do animal. Ele vive na não-relação.

O animal não sabe o que é um equívoco, mas ando me perguntando se nós também não estamos esquecendo o que vem a ser isso. Porque um equívoco não é bem um erro, é algo que toma um caminho inesperado, um escrituário que desconhece ou não gosta de tremas, um carimbo que escorrega e borra o canto da página, uma relação com o mundo, uma marca no mundo.
Pois bem, estamos tomados de equívocos, o tempo todo, e sem eles não haveria evolução humana. Somos alimentados por eles a granel, todos os dias, mas suspeito existir uma teia que os camufla, provavelmente pensando em vendê-los no comércio paralelo.

Essa teia-rede, que não é de aranha, também esconde paradoxos e esbarrões com o tal mundo. Porque a aranha nada sabe da mosca nem pode tirar suas medidas, no entanto determina a amplitude das malhas da sua teia de acordo com as dimensões do corpo da mosca e confere a resistência dos fios à proporção exata da força de embate do corpo da mosca em voo. Ela não se equivoca justamente porque o seu mundo e o da mosca são incomunicantes, apesar de sintonizados a ponto de parecerem uma partitura. Elas se entendem sem equívocos porque comungam da mesma cegueira.

Nunca fomos expostos a tantas imagens, diariamente, mas nunca estivemos tão cegos. Efeito colateral básico de toda nova tecnologia, já dizia o guru McLuhan: ao mesmo tempo em que ela amplia nossos sentidos, também limita-os, tornando-os tão obsoletos quanto um iphone da última estação. Ou alguém ainda sabe de cor os telefones dos amigos mais próximos?

A minha memória não sabe mais nem meu nome direito, agora que pedi uma segunda via da certidão de nascimento e descobri nunca ter tido o trema que marcava meu sobrenome, a chuva do u que molhava minha casa do moinho desde a alfabetização, o que tem a ver com a história do carimbo, mas deixemos.

Há mesmo quem não consiga mais ler livros com começo meio e fim e que tenha mudado inclusive a rota da leitura: não mais da esquerda para a direita, mas de cima para baixo, em saltos de aranha, abocanhando as moscas mais gordas aqui e ali, sem ordem alguma, randomicamente.

A rede nos morde diariamente e come nossos cérebros aos poucos. Posso sentir isso enquanto escrevo aqui e agora mas absolutamente fora do tempo, engolida pelos sinais de mensagens que chegam sem pedirem licença ou ao menos oferecerem um carimbo (ou um trema).

Que a internet, as redes sociais e os famigerados grupos de whatsapp são um perigo para os escritores até a mosca sabe, mas não estamos falando apenas de distração ou falta de foco. É um cérebro sendo comido por dentro, em cegueira comunicante com outro cérebro que não usa a mesma linguagem do humano.

Talvez seja um erro e não um equívoco. É um final de linha, não uma mudança de caminho. Algo está acabando de muito importante, e pode ser que esse algo seja o encontro com a terra do filósofo Heidegger, onde o ente existe na forma do poder-ser, onde o tédio, arqui-inimigo das redes sociais, é condição de potência pura, de recusa a todas as possibilidades específicas concretas, poder que surge a partir do poder não.

Poder não ser um animal ou um deputado misógino hipócrita, por exemplo, poder não ser cego nem surdo e assim olhar ao redor de novo, como se fosse a primeira vez, apenas sendo, mantido em suspenso no nada. O que costuma resultar dessa hoje estranha experiência é um equívoco, ou o que também pode ser chamado de arte, contraste entre o mundo e a terra, entre o aberto e o velamento. São equívocos, paradoxos e aporias, coisas esquisitas sem definição precisa mas que falam do humano, daquele que se diferenciou do animal pela linguagem e pelo simbólico.

A ponte entre o homo erectus sem linguagem e o homem inserido no simbólico, o missing link de que fala Agamben, continua sendo escrito pela antropologia, mas parece não existir na rede. E por não aparecer dá a entender que não existe, empurrando os tais paradoxos e a angústia ¬("estar entregue a algo que se recusa", como a animalidade) para debaixo do teclado. Sem fricção não há encontro, sem encontro não há ansiedade.

Mas eis que a humanidade ainda é animalizável, ambígua, corrupta, falível, cheia de tropeços. Pede carimbos, encontros com o papel e com o chão, encontros sólidos e neuromusculares capazes de preparar o cérebro para o imprevisível, o pânico, o não-saber. Já atravessado pelo nada, pede o olho no olho porque, tela a tela, o desaparecido do missing link desaparece. Vê-se então muita coisa para poder não-ter-que-ver.

Lembro de uma conhecida que contava ter sentido, enquanto cortava uma carne crua para fazer bife, o momento exato em que seu marido foi esfaqueado no outro lado da cidade, num assalto.
Talvez seja por pouco tempo, mas a sobriedade humana ainda é feita de carne e a palavra ainda depende do equívoco (velamento/ desvelamento) que acontece lá fora, no diálogo. Aquele mesmo que traz carimbos, de vez em quando. Ou tremas.

(Agamben, Giorgio. O Aberto - O homem e o animal. Portugal: Edições 70, 2002)

Carla Muhlhaus é escritora e perdeu recentemente seu trema. Antes era Casa do Moinho, mas, perdidos os dois pontinhos, virou apenas um sobrenome sem qualquer significado. Nem casa do moinho, nem casa do lixo. Apenas um nome humanamente equivocado.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016



Sumidouro é quando a terra se encontra com a água de verdade, num daqueles encontros de namoro urgente que ninguém esquece. É quando a água do rio é sugada pela amante, puxando-a para o solo, levando-a pra dentro, pra dentro, pra dentro. Some tudo e vira ouro, outro, sumidouro, somado. Aquele ator e palhaço lindo foi embora assim, puxado pelas canelas num emaranhado de forças da terra que só os índios conhecem.

Rio é sempre muito perigoso. Tem correnteza, tem tromba d'água, tem pedra que desliza. Quando eu era criança andava muito pelo riacho, negociando cada tropeço com o limo, cada pedra com os joelhos sempre ralados. Pulava de uma pedra pra outra de chinelo e só não batia a cabeça lá embaixo perto da correnteza porque os pajés já estavam atentos.

Sumidouro engole tudo: gente, suspiro, sonho, ideias. É pra lá que vão os projetos mais mirabolantes e acalentados da sua vida depois que você tem um filho, por exemplo. Você pensa num gatilho para um texto enquanto arruma a mochila e, antes de saber que teve uma ideia, sente que ela caiu no sumidouro. Você acha que conseguiu entender os dois últimos capítulos do livro de filosofia, mas isso foi dois minutos antes de correr atrás de mais um joelho esfolado e deixar tudo escorrer pelo sumidouro de novo.

Vai tudo pra lá: tempo, notas mentais, notas de pé de página, fichamentos, emails, poesias, sinopses, contos, lendas de rio. Porque o sumidouro, cabeça invertida para o mundo, é sedento. Quer saber tudo o que acontece aqui em cima e quer leitura boa, quer palhaço bom, quer coração translúcido generoso, quer braço de gente que não leva ninguém junto na hora ruim, que abre o peito, olha triste e longo enquanto espera o inevitável com coragem. Espera ser sugado para a terra, para o ser-no-mundo, para a argila, para virar limo verde cantante, para ver pequenas sereias, quem sabe, girinos brilhantes, para viver um tempo de argamassas revolvidas com o espaço.

E então nesse redemoinho estranho da vida você vê sua filha desenhando numa folha de árvore feita com papel verde. Cada folha leva um sonho depois colado na árvore lá do evento da Vila Sésamo, aquele grupo que provavelmente vai para o sumidouro da filha, mas que eu queria muito ver nadando na sua superfície. Perguntei qual era o sonho dela, e quando ela acabou de falar eu mesma já era um riacho chorão. Era fazer o pai feliz. Sim, o pai, que não é palhaço nem ator, mas que escreve para atores e quem sabe outros palhaços, e que por um bom tempo esqueceu o nariz vermelho na gaveta. Na gaveta, não no sumidouro, porque acabo de entender que só as melhores coisas vão para o sumidouro, e é mentira que elas ficam perdidas. Os sumidouros são as usinas de significado da vida, está tudo lá embaixo. Eles centrifugam sentidos no centro da terra e devolvem tudo à superfície, desejos macerados, diluídos, decantados. O que agrada à terra volta para a margem. Narizes de palhaço, por exemplo.

quinta-feira, 14 de julho de 2016


Naquele dia ele ia conseguir. Não passava daquele dia. Vinha se preparando há meses. Respirou fundo, sacou o celular do bolso, abriu a agenda telefônica. Bastava encostar no número ligeiramente, tão simples, tão rápido. Você consegue, pensou, nem precisa discar nada, é rápido como tirar um band-aid, você consegue.
Não conseguiu. Bateu taquicardia, suor frio, tremedeira. E se engasgasse? E se perdesse a voz ou, pior, ficasse com uma voz esganiçada de cantor de chuveiro? Ah, mas não, não podia desistir. Havia prometido a si mesmo que, se não ligasse naquele dia, jogaria o celular na privada. Escreveu essa promessa, até. Na página de notas do celular.
Olhou para o espelho, disse Há! e ligou.
Fala Pedrão!
...
Alô?
...
Você tá aí, cara?
...
Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
...
Desliga aí, vou te ligar para ver se melhora a ligação.
Mauro, melhor amigo de Pedrão, amigo de infância, do peito mesmo, nunca mais conseguiu falar com ele. Recebeu uma mensagem no whatsapp, no entanto, onde Pedrão explicava estar pegado no trabalho, que no momento em que ligou viu que teria que desligar, que pô, saudade irmão, a vida tá corrida, como vai a Belinha? Vamos combinar um churrasco, vamos marcar aí.
Pedrão não recebeu resposta. Hoje vive corroído com a ideia de ter magoado o amigo de fé, irmão camarada, seu brother de sempre. Prometeu a si mesmo que escreveria uma mensagem para ele no inbox.
Depois dessa, Pedrão não falou com mais ninguém ao telefone. Acha íntimo demais. Falar ao telefone é uma invasão de intimidade que ninguém merece. Muito menos os amigos.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Tim-tim!


Acho importante ensinar boas maneiras. Comer de boca fechada, manejar bem os talheres, juntá-los depois no prato antes de limpar a boca e tirar delicadamente o guardanapo do colo. O problema é que ensinar isso a uma criança de três anos é difícil, porque pode ser difícil ensinar qualquer coisa a uma criança por mais de dez minutos. Ou segundos. Então a gente se diverte. Faz piquenique para servir os bonecos com maestria, colocando toalha bordada e um pratinho para cada um com uvas, bananas e morangos, ensina todo mundo a usar o guardanapo, convida o amigo do amigo e, pra comemorar a produção toda, faz tim-tim com os copos. Tim-tim!

Fazer tim-tim agradou muito. O pessoal todo, da Jessie à Cinderela, do Buzz ao Mickey, achou essa coisa de tim-tim muito divertida. Começamos a fazer tim-tim também de picolé, de maçãs, de milho cozido, de revistinha, de chave, de computador, de... língua. Ah, sim, é difícil ensinar que dar língua, o que é muito engraçado, deve ser feito só de mentirinha, em casa, com os pais. Por que? Ah, porque o moço da rua pode não gostar. Por que? Porque ele não acha engraçado como a gente acha. Por que? Porque ele não te conhece, não é seu amigo. Por que? Porque ele é estranho, e por isso você não dever dar trela pra ele. Por que? Porque... cadê o tim-tim? Vamos fazer um tim-tim?
Nesse Carnaval, dei vários tim-tins de língua. Foi a maior esbórnia.

segunda-feira, 22 de junho de 2015


A culpa e a tireoide

"Se você tem um problema na tireoide, a culpa é sua?", ele perguntou assim como quem fala com uma criança que acabou de pedir desculpas e sair acabrunhada do castigo. Castigo, não, cadeirinha do pensamento, ou melhor, da reflexão, porque senão pensamento fica parecendo castigo, então é melhor refletir. Acenei que não com a cabeça, não tive coragem de verbalizar. Vergonha alheia às vezes é maior do que a própria vergonha que, aliás, surpreendentemente, inexistia naquele momento. "Então. Se você tem algum problema na cabeça (não lembro se ele falou cérebro ou cabeça), também não é culpa sua", e continuou a apresentação, bem didática, feita especialmente para idiotas. Foi aí que comecei a pensar que, bom, talvez eu seja idiota e mereça estar ouvindo uma apresentação dessas. Quer saber? Talvez eu tenha culpa, sim. "Tenho culpa sim, doutor". "Por que você acha isso? Estamos falando de uma doença, que acomete qualquer um". Não, querido, eu tenho culpa, não da tireoide, mas da cabeça que lateja. Ela não é minha? Então. Ou tem alguma coisa lá dentro que a faz latejar? Lateja em baixo, perto da nuca, depois passa pelo zumbido no ouvido direito e vai parar a latejação entre as sobrancelhas. Sabia, doutor, que só há pouco tempo aprendi que se escreve sobrancelha ao invés de sombrancelha? Não é minha culpa? É que eu sempre pensava em sombra, sabe? A sombrancelha fazendo sombra para os olhos, protegendo do sol e da poeira etc, mas principalmente protegendo do mundo mesmo. "Por que você acha que tem que se proteger do mundo? ". Olha, doutor, o senhor me desculpe, o senhor é letrado e tal, mas essa pergunta é muito boba, não tem nem como responder. Nem a tireoide encara o mundo de frente, doutor. Se não é sombrancelha o que ela tem é alguma viseira qualquer, um óculos escuros, uma burka, sei lá, qualquer coisa. A seco, de cara limpa, ninguém aguenta."Há quanto tempo você pensa assim?" Como assim? Uai, desde sempre, devo pensar assim desde que nasci, é que não lembro. Pergunta mais estranha. Olha, me desculpe, mas tenho que dizer que estou meio decepcionada, tinha o senhor em mais, como dizer, alta estima. Acho que essa consulta foi um erro. Foi bom ter te conhecido, um prazer, seu consultório é muito bonito apesar de não ter janela e nem um quadro sequer e a sala de espera parecer um intervalo do nada pintado de verde claro, e não pensa que não reparei que a minha cadeira é mais baixa que a sua, esse recurso é batido, e não tem nada na sua mesa, não é? Nem um porta-retrato, uma caneta, um post it escrito Vai à merda, nada, tudo muito asséptico, muito bonito mesmo. Um brinco. "Olha, preciso fazer uma prescrição pra você". Só se for para a tireoide da sua mãe, meu filho. Porque eu tenho culpa sim e vou expiá-la lá fora, no mundo sem bula e sem sombrancelhas. Oi? Não, não, não tem ninguém pra me buscar não, eu vou sozinha mesmo, mas eu gosto, assim não preciso me preocupar com a tireoide de ninguém, mas pode deixar que vou pagar a consulta, deixo um cheque lá com a sua secretária maquiada. Agora preciso ir, muito obrigada por todas as explicações, entendi muito sobre neurônios e sinapses, queria ter ainda aprendido mais sobre a tireoide, mas mesmo assim foi tudo muito proveitoso, e estou falando isso porque sou muito educada mesmo latejante. Pra quem? Não, não tem ninguém pra ligar não, agora estou perdendo um pouco a paciência apesar de ser muito educada, entende? O que é agora? Vai me prender numa camisa-de-força linda e lânguida, verde-clarinha? E a tireoide, como ficaria? E a tireoide, hein, doutor? Você já pensou em como ela se sentiria? VOCÊ JÁ PENSOU NA POBRE DA TIREOIDE?

quinta-feira, 19 de março de 2015

Gosto de Abba
embalando você
no carro-bibi.
Gosto de te ver dormindo
olhos fechados
boca distraída
Sonho no meio
do caminho.
Vidro fechado pra fora é
porta aberta pra dentro.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Quarenta, eu?

Pensei em descalabro, sei lá porquê. Eu já sei de tão poucas coisas que não vou me preocupar com a origem desse descalabro aqui. Quero descalabrar alguns enlatados internos. Meus 40 anos, por exemplo. Falta um mês.

Aos 40 anos, eu queria estar no topo do mundo. Ser poliglota, ter viajado por todos os continentes e saber fazer a melhor bruschetta do planeta – de preferência evitando rimas infantis. Saber cozinhar arroz tailandês e dosar bem o açafrão. Saber escolher vinho, receber, fazer imposto de renda. Aos 40 eu também já teria uma casa com quintal, onde a minha filha poderia criar um cachorro. Já tenho a filha. Falta a casa e o cachorro.

Já plantei uma árvore (um pinheiro, na verdade) e escrevi mais de um livro. Juntando com a filha, era para eu estar satisfeita e sacar a minha carteirinha de adulta no consultório da analista, mas a criança continua aqui, pulando num pé só. Agora, só porque eu falei isso, ela está pulando com os dois.

Criança não gosta muito de responsabilidades. Quer dizer, não na hora errada, que é aquela em que se quer fazer outra coisa. E é difícil conciliar a hora em que se quer fazer alguma coisa com a hora em que se deve, por coincidência, fazer essa mesma coisa que se quer fazer. Sim, é difícil de entender pra mim também. Eu ainda não tenho 40 anos.

Agora, por exemplo, eu quero apenas que o mundo seja menos chato. Que tenha menos contas para pagar, menos horários a cumprir, menos eletrodomésticos quebrados e mais caixas eletrônicos. Queria ter um caixa eletrônico embaixo da minha cama. Queria dormir e acordar com o dinheiro na cabeceira, na conta certa, sem precisar de troco. Eu nunca mais esqueceria de pagar a diarista, por exemplo. Estou pedindo muito?

Ouvi dizer que a vida começa aos 40. É mentira. Aos 40 a gente começa a morrer, e isso porque a ideia da morte sai debaixo do caixa eletrônico e se esconde no travesseiro recebendo a guarida do exército de ácaros, porque você ainda não chegou na idade de aceitar aquelas capas antialérgicas que transformam o travesseiro num tijolo. Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer, entende a espuma, mesmo na voz abafada pelo lençol. Sim, querida, vamos todos, você grita dormindo. Mas quando nasce um filho a gente morre mais. Com mais intensidade, e mais rápido também. Então, aos 40, a vida se torna uma corrida contra o tempo.

Se não dei certo até agora como escritora ou bailarina, já era. Se não fiz aquela apresentação de sapateado inspirada no Gregory Hine de O sol da meia noite, já era. Se não aprendi andar a cavalo, lá lá lá lá lá. Minha lombar, a essa altura destruída, geme só de pensar na ideia. Esquiar então dá vontade de rir. E quem ri, dessa vez, são os joelhos.

Há uma velha ao meu lado. É estranho, porque ela se parece comigo. Vivo dizendo para ela endireitar os ombros e relaxar o pescoço, mas acho que ela já não escuta mais. Vive curvadinha, com os pensamentos enrugados e mãos paralisadas ante o teclado. Ela quer escrever alguma coisa, talvez algo sobre essa corrida boba contra o tempo, mas obviamente não consegue. Pergunto se ela quer ajuda e relembro que ela não escuta. Gesticulo, então, e ela apenas me olha com olhos turvos. Em algum momento do passado ela quis me falar alguma coisa, provavelmente algo sobre o tempo que se perde correndo contra o tempo. Mas ela cansou e hoje não quer falar mais nada.

Eu devia tê-la escutado antes.