segunda-feira, 17 de novembro de 2014



Inhotim tem um andar sincopado. Traz uma pausa aos passos e passos à pausa. Mistura arte botânica com arte contemporânea, bromélias com esculturas, caminhos e fissuras. São 110 hectares, a gente logo aprende. 10 mil metros quadrados de espaço mágico. Espaço suficiente para entender o que Heidegger quer dizer com... espaço: o próprio espaço em si é o abrir espaço, é dar fôlego e licença para a concretude e, consequentemente, para a nossa relação com o mundo. Em Inhotim caminha-se muito. Heidegger diz: Viver é caminhar. Sincopadamente.


Inhotim, Brumadinho, BH.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014



Entre Homero, tijolos e azulejos

"Ah, vai ler Homero!", disse a professora, e a icônica frase acabou batizando, no whatsapp, um grupo de conversa dos alunos. Tempos modernos. Era um desabafo, a frase, um desencanto com a juventude que só conversa via multiplataformas eletrônicas, olhos grudados no celular, dedos ágeis e distraídos deslizando pela tela. Mas era também um comando e, apesar de já ter me distanciado das gerações z, y e de outras cujo alfabeto provavelmente nem conheço, obedeci o timbre imperativo. Comprei a edição recomendada da Odisseia e me aventurei pela jornada de Odisseu.

O ímpeto venturoso, no entanto, durou pouco mais de dez páginas. Ainda no Canto I me perdi na cólera de Posido, não sabia mais quem era Orestes, quem Hermes, ou quem fora gerado pela ninfa Toosa, filha de Forco, e, principalmente, quem queria se vingar de quem e porquê. Apesar de me sentir envolta numa espécie de bruma melodiosa que a literatura contemporânea desconhece, por ora precisei, infelizmente, abandonar a nau.

Não é culpa de Homero, é claro. Talvez a culpada seja a minha memória, deficiente desde que inventaram o google, o gravador digital, os aplicativos de notas e lembretes e até mesmo o whatsapp. McLuhan não poderia estar mais certo: a tecnologia digital é, sim, ao mesmo tempo, uma extensão e um aniquilamento de nossos sentidos e capacidades. Lembro de que, na pré-adolescência, sabia o telefone de todos os meus amigos de cor. Era outra, certamente, a minha memória, sem a flacidez dos neurônios atuais ¬– esses que, a fórceps, nascem para o whatsapp e afins.

Acabrunhada, paro a leitura e saco da bolsa ele, o senhor dos tempos, o aparelho móvel indispensável. Passo os dedos pelas fotos. Uma delas, tirada numa loja de móveis por pura atração estética, parece querer me dizer alguma coisa.


Sim, há tijolos dispostos nas prateleiras. Como livros esperando por um encontro, eles habitam o espaço com naturalidade. E escrevo habitam porque pesquiso, no google, a etimologia da palavra decorar. Descubro que nela está presente a palavra grega "doxa": senso comum, opinião, doutrina. Paráfrase, também, vejo no meu caderno: reescritura, tradução na própria língua. Os tijolos estão ali para serem lidos, seguidos e coabitados em nossa rede de (in) certezas. Eles decoram e explicam a contemporaneidade avessa à Odisseia. Eles nos habitam e nos doutrinam.

Há um cheiro de abstrato nesse concreto exaltado. Se folheados, os tijolos não nos contarão tramas de deuses e mortais embrumados em melodia poética brilhante, mas nos dirão muito, por exemplo, sobre Descartes. Se no mundo grego os deuses convivem com os homens e, logo, não há nada que seja sobrenatural (não há nada que não faça parte da natureza), no mundo cartesiano e pós-cartesiano, se é que se pode dizer assim, não há nada que não seja matéria nem pensamento, nada que recupere a cisão entre homem e mundo. Sem prateleiras para o que não vem da razão.

Nada, nem mesmo os tijolos, estão sujeitos ao devir. E por isso mesmo, talvez, eles precisem mudar de lugar. Quando tudo parece tão cimentado, a parede sente vontade de virar do avesso e mostrar seus bastidores. Escrutinamos o tijolo por pura falta de alternativas ou porque na argila também estejam, queimados no forno industrial, nossos paradigmas. O mais profundo é a pele.

Passamos do homérico mundo circular do devir, sujeito sempre ao movimento de vir a ser, ciclo de nascimento e morte eterno, ao mundo do ser já fixado, emassado, construído ¬– finito. É essa marca da mortalidade do ser e do mundo que escorrega para as prateleiras ao menor descuido. Gestos artísticos, é o que parece, são resistentes ao cimento do indefinido.

É sabido que, depois de Descartes, a razão científica foi colada à experiência de tal modo que se tornou empírica. Mas não deixou de ser abstrata. O dinheiro e o H2O da água são abstrações reais, lembra Marx, pra quem a ciência moderna talvez não tivesse sido possível sem o capitalismo. Vivemos abstrações encarnadas num mundo sequestrado pela mecânica e é por isso que, mesmo acariciando a parede com as mãos como as crianças fazem com propriedade, não conhecemos a parede. Também deve ser por isso que a minha filha de dois anos, com alguma frequência, tenta literalmente entrar nos seus livros abertos no chão, pisando neles e encaixando os pés dentro das páginas. Respeito o momento. Entendo a necessidade latente, hoje, de entrar em algum mundo, qualquer um, já que estamos sempre do lado de fora, do lugar de quem olha de longe e engole uma explicação – geralmente científica. Prefiro que o mundo escolhido por ela seja o da literatura. Há os que preferem entrar na igreja, por exemplo. É mais fácil caminhar lá dentro. Estão escondidos os tijolos.

O mundo moderno brigou com Homero. Sentiu-se ameaçado por sua força luzente e rompeu com o ser e com o real. Adotou a ideia tornando-se assim platônico, desistindo de encarnar qualquer realidade concreta ameaçadora como as grandes naus. Entre a verdade e o saber já fora criado um abismo pelos romanos, levados a adaptar seu realismo ao cristianismo. O real, assim, não está mais no ser, imantado como na voz de Homero, entoada capaz de abraçar o mundo. Mas talvez, arrisco pensar, ele esteja no tijolo.

No lugar da poesia de Homero, aquela que, define Heidegger, "é a poesia que permite ao homem habitar a sua essência", ficou a linguagem-instrumento, incapaz, por isso mesmo, de produzir uma Odisseia. A linguagem, em Homero, não tinha um objetivo: era um fim (e um universo) em si mesma.

Mas a linguagem é a senhora do homem, diz Heidegger. É nela que se dispõem tijolos e documentos "suculentos" – essa foi outra expressão anotada na aula, mas que não virou título de grupo de whatsapp. Documentos são vivos e suculentos porque, quando palavras são compartilhadas, elas se tornam realidade. Há toda outra humanidade em laivos, estilhaços e clarões de um mundo que já se foi. Lembrei imediatamente dos quadros de Adriana Varejão, das carnes de azulejo:


Azulejaria em carne viva, 1999, óleo sobre tela e poliuretano em suporte de alumínio e madeira.


Quando a linguagem não dá conta do real ela excede o homem e atravessa paredes. Azulejo mole, carne dura, tanto bate até que fura. Então o azulejo escancara a boca e grita: carne viva também é arte. A carne pesa, a pele rasga, a parede se abre: surgem novos espaços, outros dentros, antessalas da superfície, gula do olhar. Nos trabalhos de Varejão, os documentos são suculentos. Nos tijolos dispostos nas prateleiras, o concreto é abstrato.

Nesse teatro em que o homem reconta a sua história com tijolos, azulejos e carnes está, intuo em atitude metafísica, a poiesis moderna, carregada de permanência e infinita enquanto dura. Quando a palavra não consegue mais dar conta do real, não é porque a realidade cresceu. A própria palavra, imersa na comunicação funcional, é que ficou menor. Grande só a poesia, capaz de levar o homem a habitar poeticamente o mundo. E talvez por isso seja tão difícil adentrá-la.

É construindo que o homem habita, lembra Heidegger, desenhando a quadratura desse habitar que é, ao mesmo tempo, ser : céu / terra / deuses / mortais. Não somos corpos encapsulados e no homem também vive o extraordinário, o divino, a centelha capaz de fazer brotar tijolos em prateleiras ou carnes em azulejos. No homem ainda vive Homero, imortalizado pela poesia, esperando pelo bom combate, pelo AGON, luta pela excelência que virou luta da alma e hoje parece apenas agonia medicada. É recomendado que estejam fora das prateleiras as tragédias ou qualquer outra coisa que escape ao nosso desejo racional de controle.

Ainda assim, mesmo a tragédia traz sempre o horror por meio da palavra. Não vemos Édipo furar seus olhos, por exemplo. Catástrofe e catarse só existem através da linguagem. "O poeta lava a violência com a palavra", anotei também em sala, sublinhando duas vezes a frase. Por isso Homero, cego, vê a pura imagem e a poiesis, para os gregos, é sempre menor do que a obra deixada por ela.

Compreendida a diferença de mundos, tenho profunda inveja de quem lê Homero. Empurrada por Nietzsche para a agonia, (AGO ¬– empurrar, incitar), pretendo fazer dessa inveja o motor para a conquista da leitura de Odisseia. Mesmo que o grupo do whatsapp acabe, seu título ainda vai estar lá. Pensar, como bem disse Heidegger, é agradecer.



Referências bibliográficas

Odisseia / Homero ; tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

Varejão, Adriana. Adriana Varejão: entre carnes e mares = between flesh and oceans / Adriana Varejão; (org. Isabel Diegues; versão para o inglês Stephen Berg). Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.

Heidegger, Martin, 1889-1976. Ensaios e conferências I Martin Heidegger; Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Foge], Marcia Sá Cavalcante Schuback.- 8. ed. -Petrópolis: Vozes; BragançaPaulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. (Coleção Pensamento Humano)

Nietzsche, Friedrich Whilhelm. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. RJ: Sete Letras.








terça-feira, 30 de setembro de 2014


O nojo do mofo e o mofo do nojo
em Assim falou Zaratustra




O mofo antigo
colou-se ao novo
causando um grande bolor.
Do verde musgo saiu uma dúvida
imanente
mas logo assim que surgiu no ar
mofou também,
colando-se ao mofo mais velho.
Trata-se portanto
de um bolor
impenetrável.


O bolor amarela. Tem pêlos às vezes verdes, às vezes roxos, sendo essas cores eventualmente graduadas por uma pincelada, aqui e ali, de cinza chumbo. Posso quase acreditar que também é possível enxergar um degradê de rosa. Faço uma breve pesquisa no Google e aprendo que, para nos protegermos dos fungos e das vegetações criptogênicas, é preciso confiar na repulsa dos nossos sentidos, que soam, para o organismo, como um alarme de perigo.

Paro como se estivesse diante de uma placa de rua sem saída. Penso na garganta com nojo, travada no fundo da boca, ameaçando colocar toda a sua repulsa para fora, livrando o estômago de qualquer ameaça. Penso no esôfago tenso, preparado para a ginástica do vômito. Na saliva ácida e beligerante. Todos armados contra as bactérias ameaçadoras, que por sua vez também trabalham na mais perfeita eficiência.

Essas são ordens fisiológicas. Comandos do organismo, portanto, coordenadas ditas “involuntárias”. Engulo tudo isso junto com o Zaratustra e digiro ainda com dificuldade: são pensamentos do corpo. O nojo, antes de ser um juízo subjetivo e estético, é uma defesa orgânica. Um sinal vermelho de Pare, um alarme que seria sonoro até se pudesse, mas não é preciso. Seu pensamento é tão completo que chega a arrepiar outros pêlos, aqueles que estão no braço paralisado ante o pão bolorento. O nojo é defesa e inteligência sutil. O nojo, tenho de aceitar, também sou eu.

Ainda é difícil, hoje, e começa a parecer estranho que assim seja, pensar no corpo como alguém. “O alguém é o recheio do corpo”, diz Arnaldo Antunes. Nem só alma, nem só cadeia de músculos exercitados na academia: alguém que pensa junto comigo. Ou separado quando resolvo negá-lo, me diz a psicanálise.

Recentemente, durante a gravidez, tive a experiência de andar com patas de elefante. Meus pés, de repente, ficaram inchados e pesados como se meu corpo magro pesasse cem quilos. Era doloroso andar e as câimbras traziam com elas a angústia da imobilidade. Remédios, meias elásticas, pernas para cima: nada parecia ajudar. O desconforto era tamanho que costumava acabar em desespero. A grávida iogue e saudável estava sentindo, pela primeira vez, a inescapabilidade do corpo. Eu queria poder fugir dele. Aquelas pernas, que impediam a caminhada, não pareciam me pertencer. Senti todo o tormento de querer sair da casca e não conseguir. Eu era, mais do que nunca, todo aquele corpo inchado.

Depois de nascida a minha filha, no entanto, as dores continuaram. Passaram-se dois meses, três meses, e nada. “Eu não aguento mais”, disse a uma angiologista de olhos compadecidos. A cirurgia era até recomendada, mas não eram bem as varizes que me imobilizavam. Era o peso da maternidade, era a violência de se descobrir responsável por um outro ser para sempre, mesmo tendo sido esse ser tão desejado; era a inexorabilidade em carne, osso e choro agudo de fome madrugada adentro.

Aos poucos, o tempo se encarregou de resolver o problema com laços indizíveis de afeto e, quando consegui voltar a escrever um pouco, de novo me reconhecendo como alguém que caminha com as próprias pernas, a dor passou.

É recordando fatos tão pessoais como esses que entendo melhor o Zaratustra, ele mesmo, aliás, atiçando as minhas lembranças: “Pois no fundo se ama apenas a seu filho e sua obra; e, onde há grande amor a si mesmo, ele é sinal de gravidez: assim enxerguei.” (p. 153).

Entendo com o andarilho que desgosta de planícies que “afinal, vivencia-se apenas a si mesmo”. Então, para entender o Zaratustra, aceito que o acaso anda de mãos dadas com a vontade e me relembro. Sou eu mesma tudo o que tenho.

Nietzsche faz 22 alusões ao nojo em Assim falou Zaratustra, indica o índice remissivo. Pontuações constantes e ritmadas, como quem demarca as vezes em que a língua quer deixar de ser língua. A própria frase “Assim falou Zaratustra” cadencia a valsa do descontentamento, da busca por algo que não mofe e, assim, não cause asco. Mas será que esse algo existe?

Quando queremos que algum alimento não mofe, costumamos colocá-lo na geladeira. A criogenia aliás está aí pra isso, para escrever um parênteses na vida. O ambiente refrigerado suspende o processo natural da tal vegetação criptogênica, seja ela lá o que for. O congelamento, pausa na vida úmida, quente e coerente dos fungos, é o único capaz de evitar o nojo – e também a vida. Quando algo se congela, temos a impressão de que parou no tempo. Mas o tempo, para o andarilho que conversa com cadáveres, é outro problema insolúvel.

O tempo é pai do mofo e cúmplice do nojo. O bolor, lembre-se, é impenetrável. A dúvida, imanente. Se a vontade não pode “querer para trás”, ou seja, não pode lutar contra o tempo, a criação, seja ela de um mofo ou de uma poesia, é também assustadoramente limitada. Não há como sair do corpo, inchado ou não. Eu sou, junto com o nojo, um acaso e um destino.

“Eu, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer – é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu.”

Eis um corpo novo em Nietzsche, entretanto. Um corpo que se constrói sozinho rejeitando Deus e toda culpa e por isso mesmo não tem nojo de si. Um corpo que não mofa justamente porque, no lugar de ficar parado absorvendo organismos / valores / verdades que supostamente o alimentam, se expõe às intempéries do tempo, dormindo na floresta, subindo montanhas e enfrentando as maldades soturnas do mar. Um corpo que faz parte do mundo, que não está separado dele, e compartilha com um fungo o mistério – e as agruras – da criação. Nesse corpo está o sentido da terra. “ ‘Corpo sou eu e alma’ – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?”, pergunta o andarilho. Sim, por que não?

A criança olha tudo como se fosse a primeira vez. De certa forma ela sabe, no corpo em crescimento, que tudo que é essencial é bem sutil. Ela sabe, de alguma forma, que não há verdades e que o saber não é um valor absoluto. E é importante que assim o seja, para que ela possa errar, trocar, tentar de novo, jogar. Reaprender. É claro que é cansativo esse processo e por isso ela pede que uma historinha seja contada de novo e de novo e de novo, mais uma vez numa espécie de cadência musical. Lidar constantemente com o novo, com que não mofa portanto, é difícil e perturbador. Mas é assim, parece, que o corpo funciona. Mesmo depois de adulto. E talvez por isso Zaratustra diga que acreditaria somente num deus que soubesse dançar.

“Mas o pensamento mesquinho parece um cogumelo: rasteja, curva-se e pretende não estar em nenhum lugar – até que o corpo inteiro se ache podre e murcho de tantos pequenos cogumelos.” Eis o mofo. Eis também o corpo ressentido de um projeto que não deu certo. Deus está morto e mofado e por isso o desprezo por esse corpo que um dia acreditou tanto nele. É preciso ir além e começar de novo, como num jogo. O corpo que está para além do homem, para além de suas crenças, não mofa e não causa nojo. Parece ser mais alegre, capaz de dançar e se entreter com borboletas e bolhas de sabão. É atravessado pela vontade de criar e acostumado a mudar sempre, sem precisar se alimentar de valores e morais de outrem como um parasita. O super-homem, aqui, troca a criptonita pela naftalina, depois de também ter mudado, é claro, de planeta.

O super-homem nasce na terra e pertence à ela, é o próprio sentido da terra. É o que não mofa nunca porque está além do corpo; está além dele mesmo, além de seus limites marcadores de mofo.
O super-homem, e agora quem fala é a ex-grávida de pernas inchadas, pode ser a criança que não se deixa mofar, sempre destruindo crenças para criar algo novo, fazendo, tal qual o funâmbulo, do perigo o seu ofício. É levando tombos que se aprende a andar, e para nascer sozinho, sem cortes, é preciso querer muito e fazer esforço. É preciso, de certa forma, renegar as cesáreas e participar do próprio nascimento.

O que mofa e intoxica é achar que já chegamos onde queremos, aprendo à fórceps, sofrendo junto com Zaratustra. A criação, como a criança, habita corpo e alma e por isso mesmo deixa o sangue dos machucados tingirem os esparadrapos, para dizer o mínimo. Mas é melhor ralar os joelhos do que parar de andar, tento me convencer, de mãos dadas com a angústia. É melhor se tornar uma passagem do que um ponto final. É super-homem também aquele que esquece de si mesmo. É a obra em si a causa do artista, e não vice-versa.

A inocência está na vontade de gerar, entendo, e quem quer criar para além de si tem a vontade mais pura, diz Zaratustra. Aquela onde certezas, gostos e sentimentos não importam porque simplesmente não existem. O movimento da criação é o próprio movimento da natureza, da vegetação criptogênica portanto, valsa sem dançarinos. Nascer é querer e, inebriado, esquecer-se, para depois olhar tudo com olhos de criança: como se fosse sempre a primeira vez. Nascer e criar então são verbos parecidos e, ao que tudo indica, resistentes ao nojo.
O difícil, acrescentam os pés inchados, é não deixar que tudo isso mofe ao entrar em contato com o ar.

“Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original” (Nietzsche)

Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2011.

P.S - Desculpem a falta de notas de rodapé. Ainda não sei como fazer isso aqui no blog.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O homem é sempre o encontro com o seu mundo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014


Cascos

Os cascos foram se descolando em blocos.
Primeiro foi o do pulmão.
A crosta grossa tinha cheiro de mofo, cigarro e bombinha de asma.
Depois peguei um craquelado de costela. Não estava quebrada, mas doía.
Quando chegou perto do coração a casca toda amoleceu, úmida quente brilhante pegajosa.
Não senti nojo não, achei até bonito. De lá dava para ver o pulmão agora descascado, parecia transparente meio azul.
Tinha uma luz nisso tudo, um traço, um folguedo de raio solar, algo assim que ilumina e dá calor.
Os cascos, pesados, iam assim se descolando. Quando um soltava do outro eu escutava o estalo.
Só depois de muito tempo é que me senti casco inteira, feita só deles, mais nada.
Aé pensei melhor se queria quebrar um a um.

Essa poesia escrevi em 2004, pouco antes de saber que a minha mãe estava com câncer no pulmão. Hoje ela está curada e a minha intuição poética também.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

fio da madrugada / navalha / acordada

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A poesia, na verdade, é bruta. Está nos fatos e machuca. Está na farpa e na harpa, no vinho e no leite ninho, sozinho. Na lata mesmo tem poesia em pó. Dissolvida em água, escorrega para o estômago e fermenta em prosa. Na bancada toda da cozinha tem poesia. Ali mesmo, perto da carne crua e das facas. No sal e na pimenta. Em tudo, tudo mesmo. A poesia é mais onipresente do que Deus. Aliás, se Deus existe, é porque foi escrito por ela.
O problema, já lembrava Nietzsche, é que nos tornamos péssimos poetas.

quarta-feira, 23 de julho de 2014


Fim de Copa

A Copa do Mundo, para o espanto de todos, acabou. Não fui às ruas, é verdade, mas ouvi poucas vuvuzelas e posso quase jurar ter visto mais gringos do que brasileiros com a camisa do Brasil. Pode ter sido só impressão mas, depois da final melancólica contra a Alemanha, impressão parece ser tudo o que temos.

Vivemos, nesse jogo trágico do 7 X 1, o duelo entre a técnica e a emoção, e não escrevo isso com um chope ao lado numa mesa de bar. Mais uma vez, como tantas, o brasileiro apostou na raça, na gana, na força do peito e no sentimento na hora de decidir um jogo que, por incrível que pareça, depende de muita técnica. De novo o brasileiro apostou todas as fichas no emocional e, com preguiça de fazer o dever de casa, costurou de véspera o pensamento mágico de que a vitória viria. Afinal, nós somos brasileiros e merecemos. Tudo sempre se resolve. Deus é verde e amarelo e vai dar tudo certo.

Essa não é uma crônica esportiva, é claro. No entanto, não consegui parar de pensar na depressiva final de Copa que tivemos quando comecei a ler Do Belo Musical: Um Contributo para a Revisão da Estética da Arte dos Sons, de Eduard Hanslick. De uma clareza lógica desconcertante, as chamadas do crítico musical austríaco, feitas ainda no século XIX, reverberam potentes agora, em 2014, num ano que talvez, apenas talvez, comece agora. A Copa do Mundo terminou, e terminou com algum trauma. Foi-se com ela não só a taça, mas também a crença na força onipresente da emoção. Sentimento não ganha jogo, aprendemos na marra. Nem define a música. Hanslick, se tivesse conhecido Felipão, talvez lhe tivesse dado bons conselhos. Emoção não deve ser a língua da música, e o futebol deveria seguir o exemplo. Fim da partida.

Em nossos argumentos não recorremos à analogia à toa, lembra o filósofo Merleau-Ponty: é o mesmo mundo que contém nossos corpos e nossos espíritos. Já o que a música e o futebol têm em comum é o mesmo que um determinado acorde compartilha com o sentimento de amor, raiva ou compaixão: nada. A música, ao contrário do que muita gente pensa até hoje, e me incluía nesse time, não transmite sentimento algum. Somos nós, eureca, que acrescentamos ao seu movimento (aí sim, algo de aparentado ao sentir) uma determinada emoção, dependendo do humor do dia e da civilização de cada ouvido (também no pensar e sentir há tradição). Parece óbvio, mas o óbvio, que o diga a seleção brasileira, às vezes é muito difícil de enxergar.

Música é arte autônoma, e suscitar sentimentos pode ser o seu conteúdo, mas nunca o seu fim. A fantasia é o órgão genuíno do belo. A atuação exclusiva do entendimento por meio do belo, ataca Hanslick, chega a ser patológica.
A música age. Ela troveja, sussurra e pode ser dramática como no tema do segundo final de Os Huguenotes, cita o autor, mas somos nós que colocamos sentimentos nessas ações. O símbolo é sempre diferente do conteúdo. "A peça sonora flui da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte" , diz o crítico.

"Toda a verdadeira obra de arte se estabelecerá numa qualquer relação com o nosso sentir, mas nenhuma numa relação exclusiva. Por conseguinte, nada de decisivo se afirma acerca do princípio estético da música quando esta é caracterizada mediante o seu efeito no sentimento."


Eis o pensamento moderno esbarrando na música. Aprendemos com Descartes que sentir é pensar, e pensar é algo que fazemos de mãos dadas com o mundo. A realidade é mesmo histórica e a música não se dissolve com qualquer conteúdo. Ela é o conteúdo. O belo musical, arte da música, é autônomo e especificamente musical, ensina Hanslick. Ele, o belo musical, não fala o idioma do mundo, tampouco o do futebol. Como toda arte, ele parte do sensível e nele se tece. As fronteiras do seu conteúdo espiritual demarcam, exclusivamente, o que é musical e que está fora, portanto, do conteúdo real e histórico onde transitam conceitos, representações e... sentimentos.

O que a música pode representar são as ideias, conceitos vivificados, conteúdos da encarnação artística. Para tanto ela encarna o movimento dos estados de ânimo, o pulsar dos sentimentos e do humor. Como toda atividade artística, a música individualiza ideias gerais, mas é espírito que se configura a partir de dentro.


"A fantasia não é, naturalmente, um âmbito fechado: assim como extraiu a sua centelha vital das percepções sensíveis, assim envia, por seu turno, rapidamente os seus raios à atividade do entendimento e do sentimento. No entanto, estes são para a genuína concepção do belo apenas campos limítrofes."


"Descrever com sons um sentimento é ridículo", reafirma Hanslick.
Tentar ganhar um jogo só com a garra e a coragem também.
Desvalorizamos com isso o sentimento? É evidente que não. Apenas entendemos que o efeito da música sobre o sentimento nunca poderia, como aconteceu até Hanslick, fundamentar um princípio estético.
"De fato, uma ópera em que a música se emprega sempre e apenas como meio da expressão dramática é um absurdo musical.", sentencia o autor. A música, que até então era usada para "imitar" determinados sentimentos, sendo considerada legítima somente quando bem-sucedida nesse intento, já era livre e despreocupada com o timbre da compaixão, do amor ou do ressentimento, simplesmente porque eles não existem.
Da arquibancada, xingando ou ovacionando, a torcida não muda o placar do jogo. Fim de Copa.


P.S Para quem se interessar pelo livro, que só conheci por causa da minha pós-graduação: ele pode ser lido em pdf no link abaixo!

Do Belo Musical

quinta-feira, 8 de maio de 2014



Carta aberta ao professor Edgar Lyra


"O mundo não gira ao redor do umbigo de vocês", disse o coordenador segundos antes das minhas pernas, compulsivamente, se retirarem da sala. Tenho pernas muito críticas e hoje, aos 39 anos, só vou onde elas mandam. Há pouco mais de um ano elas me mandaram de volta para a PUC, onde me formei em Jornalismo no longínquo ano de 1996. Voltei, como boa filha à casa, para cursar uma pós-graduação em arte e filosofia. No meio do caminho houve um mestrado em comunicação, mas isso foi antes de descobrir que só a filosofia salva.

Fiz muito esforço para ir àquela aula, especificamente. Esperei a babá que se atrasou, peguei mais de uma hora de trânsito, estacionei longe da faculdade e andei muito para quem havia torcido feio o pé há poucos dias ¬– meus pés também são muito rebeldes às vezes.
Eu jamais havia saído de sala assim, nesse ímpeto de revolta. Um dia depois, refeita da raiva que acabou em insônia, parei calmamente para pensar no meu umbigo. Vejamos: meu umbigo já alimentou outro umbigo que completa dois anos no sábado. Já estudou o suficiente para saber que nunca se estuda o suficiente e publicou alguns livros. Considerando ser um umbigo razoavelmente experiente, portanto, pensei que não merecia uma reprimenda dessas, provavelmente endereçada semestralmente aos alunos de graduação em filosofia coordenados pelo Mestre Edgar, dublê, naquele dia, de coordenador da Pós.

Mas pensemos: se levarmos adiante os estudos de Merleau-Ponty, por exemplo, sobre a fenomenologia da percepção, veremos que não há a menor, nem mesmo a ínfima possibilidade, de fugirmos do nosso umbigo na hora de olhar para o mundo. Ao ler Merleau-Ponty, aliás, senti ganhar passos mais largos, embora ainda desengonçados como os de uma criança. A realidade finalmente aparecia como algo a ser visto de fato, onde as coisas dialogam entre si. De certa forma, foi um alívio encontrar em Ponty uma realidade sensível que, ao contrário do que dizem os mui modernos, existe. Enfim um retorno às coisas mesmas, a uma calçada que está dada, um chão pisado por todos sem tantos enganos – ou tropeços – dos sentidos. A origem da verdade, pasmem, pode sim estar na percepção.

Então, caro Edgar, preciso discordar: o mundo gira, sim, ao redor do meu umbigo. E é ele, o meu umbigo, que me garante que não há nada de errado em reclamar de um professor incompetente. Tenho ótimas lembranças da minha época de faculdade, mas também lembro de ter tido péssimos professores. Péssimos, ruinzinhos mesmo, daqueles que causam vergonha alheia. Nos intervalos das aulas, sentados de pernas cruzadas e encostados nos pilotis, pensávamos às vezes em reclamar. Mas tínhamos mais o que fazer. Sim, chopadas, como você deve ter pensado, mas também tínhamos estágio, processos de seleção e a luta pela vida profissional lá fora. Éramos umbigos muito ocupados.

Eu me arrependo. Se tivéssemos reclamado na época, talvez os umbigos que chegaram depois de nós tivessem se beneficiado. Uma pena.

Sim, o mundo gira ao redor dos nossos umbigos e, felizmente, da sua capacidade crítica e reflexiva. É isso o que nos torna alunos, esses seres que aprendem, quando a aula é boa, que o essencial do homem não é o humano, mas sua relação com o mundo. É na incapacidade de dividir o senciente do sentido que acontece a visão, e isso mesmo quando olhamos uma simples sala de aula polvilhada de preconceitos.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

E de repente
(Mentira, eu senti tudo isso chegando)
Quero te dar as nuvens
Melhor, quero antes pintá-las de rosa
Quero virar algodão doce
rosa
Quero comer bem mastigado suas bochechas
rosas
quero me pendurar em você
como um móbile
Estou perdida, penso
(sinto também, sempre)
Agora já sou sua
quando era só pra você
ser minha.
Pobre de mim, filha,
pobre de mim.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A passarela trágica de Nietzsche



A vida é uma tragédia, costumava me dizer um antigo chefe. Ele já beirava os cinquenta anos e eu era apenas uma estagiária de vinte, o que fazia com que eu considerasse aquela frase um tanto exagerada ¬– dramática, para usar um termos mais adequado aqui.
Outros vinte anos depois, checo na internet a queda, em pleno horário de rush da Linha Amarela, de uma passarela inteira. Até agora são cinco mortos, quatro feridos e fotos assustadoras propiciadas pela imprudência de um motorista de caminhão que passou por baixo da passarela, em alta velocidade é claro, com a caçamba levantada. O impacto foi suficiente para derrubar toda a estrutura em segundos, bloqueando os dois sentidos da via expressa. O prefeito recomenda que as pessoas evitem sair de casa se precisarem usar essa via porque, nas palavras do próprio, estamos diante de uma tragédia.

De repente, numa manhã que começara normal, com café e um trabalho sobre tragédia grega a escrever pela frente, o peso de vigas de concreto esmagando carros traz à tona a inexorabilidade. Por mais que diariamente tentemos nos desvencilhar da incômoda ideia da fatalidade com os mais variados recursos – espirituais, religiosos, psiquiátricos –, a vida é, sim, uma tragédia.
Foi o Cristianismo, grita Nietzsche, que nos distraiu desse fato, prometendo vida eterna e assim tirando o foco da vida terrena. Passamos a olhar mais para o futuro e para o passado do que para o presente. Olhamos mais para o corpo de Cristo do que para os nossos próprios corpos, desde então sempre culpados e envergonhados.
Suspeito que o filósofo tinha razão. O meu ex-chefe também.

Parece que os gregos sabiam bem o que faziam quando, num momento de exuberância do seu povo, da magnificência de Atenas, centro do mundo no século V, encenavam as mais doídas tragédias. A dor ainda não havia sido apartada da vida. Sofrer com os revezes do destino fazia parte de viver, empreitada que, por isso, não deixava de ser bela. O bem e o mal ainda não liam a Bíblia.
Releio alguns trechos de O Nascimento da Tragédia. Como paralisada pelo trânsito, engarrafada em suas linhas, entendo um pouco melhor a cultura apolínea:

"Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhe dar as costas, desalentado e decepcionado. Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau. E assim é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal, 'pairando em doce sensualidade', da própria existência deles."

Continuo a busca na via expressa nietzschiana e enxergo o substrato dessa cultura. De certa forma, podemos dizer que é o susto. Quando passarelas ainda não despencavam simplesmente porque ainda não existiam, reza a lenda que o Rei Midas perguntou ao daimon Silesio, espírito intermediário entre mortais e deuses e companheiro de Dionisio, qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Em vão tentou o demônio (daimon) não responder: "Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria pra ti mais salutar não ouvir?". Diante da insistência do Rei, no entanto, despejou o golpe: o melhor mesmo para o homem era não ter nascido, era nada ser. Uma vez vivo, o melhor para ele era morrer.
Como lidar com um mito desses? Com beleza e medida apolínea aproximadas ao arrebatamento dionisíaco, identifica Nietzsche, encontrando na tragédia grega o exemplo dessa mistura. Eram os gregos construindo passarelas entre homens e deuses.

"O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos. Aquela inaudita desconfiança ante os poderes titânicos da natureza, aquela Moira (destino) a reinar impiedosa sobre todos os conhecimentos, aquele abutre a roer o grande amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do sagaz Édipo, aquela maldição sobre a estirpe dos Átridas, que obriga Orestes ao matricídio, em suma, toda aquela filosofia do deus silvano, juntamente com seus míticos exemplos, à qual sucumbiram os sombrios etruscos –, foi, através daquele artístico mundo intermédio dos Olímpicos, constantemente sobrepujado de novo pelos gregos ou, pelo menos, encoberto e subtraído ao olhar. Para poderem viver, tiveram os gregos, levados pela mais profunda necessidade, de criar tais deuses, cujo advento devemos assim de fato nos representar, de modo que, da primitiva teogonia titânica dos terrores, se desenvolvesse, em morosas transições, a teogonia olímpica do júbilo, por meio do impulso apolíneo da beleza – como rosas a desabrochar da moita espinhosa."


É dessa mitologia religiosa e cívica que surge a tragédia, sempre ligada originariamente aos deuses. Até a Idade Média, religião e arte andavam juntas. O divino oferece ao homem não uma promessa de futuro e salvação, mas uma revelação do seu ser.
Para Nietzsche, as fontes primeiras da tragédia são puramente religiosas e não políticas. Aristóteles discordaria lembrando que a tragédia tinha sim um sentido político e só existiu enquanto perdurou a democracia. Christian Meyer reforçaria ainda a tese afirmando que a tragédia era um ato cívico. No entanto, por mais que pareça difícil desfazer o vínculo entre tragédia grega e política, nossa passarela aqui, com alguma licença poética, é carioca e nietzschiana. Além disso, a religião grega não era dogmática e sim ética, o que faz da origem religiosa da tragédia, de certa forma, um registro também político.
Para Nietzsche, o coro trágico é a própria expressão da voz de Dionisio, associado, por sua vez, à dimensão originária e primordial. A tragédia grega em si teria uma natureza inconsciente ligada aos mais obscuros instintos vitais. Arte e vida se confundem por terem um fundo originário comum, sintonizadas com a tensão entre Apolo e Dionisio; na tragédia, Apolo dá expressão verbal à Dionisio.
Na trama trágica, a música do coro é uma das manifestações dessa "parceria" que ocorre especialmente na voz da multidão "embriagada" e identificada com o poeta lírico que, enquanto artista dionisíaco, é um só com o Uno primordial. Esse é, para Nietzsche, o papel do coro na tragédia grega: a personificação do deus Dionisio. É assim que, junto com Apolo, ele cumpre o papel de expressar a tragicidade imposta pela vida.

"Atento ao dia final, homem nenhum afirme: eu sou feliz!, até transpor – sem nunca ter sofrido – o umbral da morte.", diz o coro ao final da tragédia Édipo-Rei, de Sófocles.

Só o divino tem o controle do fim da ação humana, sabiam os gregos. Também sabiam ser a ação humana cega e impenetrável nas suas últimas consequências. O indivíduo é, essencialmente, um ser trágico.
Mesmo as passarelas de concreto desmoronam.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Disposição privilegiada da angústia: ver o Mundo com letra maiúscula.