quarta-feira, 8 de julho de 2009

De perder a tampa



Vocês estão aí achando que o tormento das obras acabou, não é? Ah, as crianças. Tão ingênuas.
Terminada a obra, tivemos pouco tempo para curtir a cozinha nova. Não sei pra vocês, mas secar um piso alagado, nos meus critérios de lazer, não parece nada divertido.
Sim, queridos: atendendo a pedidos, vamos voltar ao quebra-quebra! U-hu! Só tenho a agradecer ao mestre de obras, que fez a gentileza de quebrar um cano pluvial e fechar tudo mesmo assim sem me falar palavra. Ah, não, estou sendo injusta: disse ele ontem que colocou um durepoxi no buraco. Ele não é um amor? E não é culpa dele se o durepoxi não agüenta o tranco de uma chuva, certo? Tampouco é responsabilidade dele o lago que se cria no ambiente a cada dia de elevações pluviométricas. Também não deve ser por mal que ele não atende mais os nossos telefonemas. Gente, como vocês são maldosos! Deixem o pobre do homem em paz!
Eu havia indicado essa doce figura para uma menina que conheci no curso Arte de Viver. A obra dela está parada há dois meses. Estou sem cara. Nunca mais indico ninguém, prometo.
Tudo isso me fez pensar. Há um tempo fiquei muito impressionada com uma notícia que li no jornal. Era sobre um psicólogo social que passara oito anos fingindo ser gari. Fazia parte da sua pesquisa de tese de mestrado na USP. Por oito anos, Fernando Braga da Costa varreu as ruas de São Paulo, tomou café com seus colegas em latas retiradas do lixo e experimentou a sensação de ser invisível. Da casta dos intocáveis, para usarmos uma temática atual.
Constatou ele que, para a maioria, os trabalhadores braçais são invisíveis e sem nome. Logo, não precisam receber cumprimentos como “bom dia” ou “boa noite”. Trata-se do que ele chamou de “invisibilidade pública”. “Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim e não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se estivessem encostado em um poste ou em um orelhão”, diz o psicólogo.
A coisa ficou ainda pior. Certo dia, um dos garis o convidou para almoçar no bandejão central. Então Fernando entrou no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passou pela biblioteca, pelo centro acadêmico, pela lanchonete. Havia muita gente conhecida em todo o trajeto e ninguém o viu. Foi então, descreve ele, que seu corpo tremeu como se ele não o dominasse e a tampa da sua cabeça ardeu como se ele tivesse sido sugado. “Almocei sem sentir o gosto da comida e voltei para o trabalho atordoado”, conta o psicólogo.
Hoje Fernando é amigo dos garis que conheceu durante sua experiência, freqüenta as suas casas na periferia da cidade e nunca, em hipótese alguma, deixa de cumprimentar um trabalhador.
O que isso tem a ver com as minhas mesquinharias? Acho que tudo. Eu nunca deixei de cumprimentar o Edson, o tal mestre de obras, e quando dava providenciava café para toda a sua equipe e ficava por ali batendo um papinho. Mas tenho lá a minha suspeita de que a vida passou rápido e ele desistiu de ser reconhecido por bem. Desistiu de ganhar respeito e prestígio como ex-pedreiro e hoje mestre de obras. Então, cansado de buscar um espelho que lhe coubesse, começou a buscar o reconhecimento que vem de cabeça pra baixo. Aquele que vai fazer arder a tampa da cabeça dos outros, que é para eles verem o que é bom pra tosse.
Fato é que empatia não é vocação, não é talento, não é milagre. Empatia se ensina. E saber se colocar no lugar do outro, seja ele um gari, um pedreiro ou uma escritora exausta com a sua cozinha, é dos exercícios mais importantes da vida. Empatia é o primeiro passo do amor pelo ser humano e sem ela não sobra nadinha.
Esse psicólogo devia ganhar o Nobel da Paz. Pra mim ele é um Buda contemporâneo, que largou seu palácio acadêmico para viver na pele o sofrimento dos menos privilegiados. Esse nunca mais vai deixar de ver um gari, de cumprimentar um gari. Esse nunca mais vai ter dúvidas do que quer dizer a palavra respeito. Acho que se todos fizessem algo parecido, o mundo seria no mínimo menos violento. E com menos canos furados.
Last but not least, para ficarmos no clima, recomendo aqui com todas as forças o filme Escritores da Liberdade. Por isso o cartaz lá em cima. Queria colocar aqui embaixo, mas o Blogger não deixou. Se vocês não entenderam o que eu quis dizer aqui nesse post multitemático, vão entender vendo o filme.

3 comentários:

Valéria Martins disse...

Eu procuro cumprimentar sempre as pessoas "invisíveis". Às vezes, são as empregadas das casas das minhas amigas. Ninguém se lembra de apresentar e eu cumprimento: "oi, eu sou a Valéria". Tento me lembrar sempre de fazer isso, onde quer que eu vá ou esteja. Acredito que a vida fica melhor assim, e que atrai coisas boas para nós.

Beijos! Boa sorte com a nova obra!

Unknown disse...

Como faço pra mandar msg em privado pra vc?

Anônimo disse...

Você sabe que passei por isso com o Sr Edson e também servi café, almoço e lanche.Pobre Benedita! Ouvi histórias e mais histórias e também fiquei na mão...
Ouvi certa vez de um pintor, que em casas em que se oferecia comida, ninguém terminava o serviço. Faz sentido!
Beijos
Celia