segunda-feira, 22 de junho de 2015


A culpa e a tireoide

"Se você tem um problema na tireoide, a culpa é sua?", ele perguntou assim como quem fala com uma criança que acabou de pedir desculpas e sair acabrunhada do castigo. Castigo, não, cadeirinha do pensamento, ou melhor, da reflexão, porque senão pensamento fica parecendo castigo, então é melhor refletir. Acenei que não com a cabeça, não tive coragem de verbalizar. Vergonha alheia às vezes é maior do que a própria vergonha que, aliás, surpreendentemente, inexistia naquele momento. "Então. Se você tem algum problema na cabeça (não lembro se ele falou cérebro ou cabeça), também não é culpa sua", e continuou a apresentação, bem didática, feita especialmente para idiotas. Foi aí que comecei a pensar que, bom, talvez eu seja idiota e mereça estar ouvindo uma apresentação dessas. Quer saber? Talvez eu tenha culpa, sim. "Tenho culpa sim, doutor". "Por que você acha isso? Estamos falando de uma doença, que acomete qualquer um". Não, querido, eu tenho culpa, não da tireoide, mas da cabeça que lateja. Ela não é minha? Então. Ou tem alguma coisa lá dentro que a faz latejar? Lateja em baixo, perto da nuca, depois passa pelo zumbido no ouvido direito e vai parar a latejação entre as sobrancelhas. Sabia, doutor, que só há pouco tempo aprendi que se escreve sobrancelha ao invés de sombrancelha? Não é minha culpa? É que eu sempre pensava em sombra, sabe? A sombrancelha fazendo sombra para os olhos, protegendo do sol e da poeira etc, mas principalmente protegendo do mundo mesmo. "Por que você acha que tem que se proteger do mundo? ". Olha, doutor, o senhor me desculpe, o senhor é letrado e tal, mas essa pergunta é muito boba, não tem nem como responder. Nem a tireoide encara o mundo de frente, doutor. Se não é sombrancelha o que ela tem é alguma viseira qualquer, um óculos escuros, uma burka, sei lá, qualquer coisa. A seco, de cara limpa, ninguém aguenta."Há quanto tempo você pensa assim?" Como assim? Uai, desde sempre, devo pensar assim desde que nasci, é que não lembro. Pergunta mais estranha. Olha, me desculpe, mas tenho que dizer que estou meio decepcionada, tinha o senhor em mais, como dizer, alta estima. Acho que essa consulta foi um erro. Foi bom ter te conhecido, um prazer, seu consultório é muito bonito apesar de não ter janela e nem um quadro sequer e a sala de espera parecer um intervalo do nada pintado de verde claro, e não pensa que não reparei que a minha cadeira é mais baixa que a sua, esse recurso é batido, e não tem nada na sua mesa, não é? Nem um porta-retrato, uma caneta, um post it escrito Vai à merda, nada, tudo muito asséptico, muito bonito mesmo. Um brinco. "Olha, preciso fazer uma prescrição pra você". Só se for para a tireoide da sua mãe, meu filho. Porque eu tenho culpa sim e vou expiá-la lá fora, no mundo sem bula e sem sombrancelhas. Oi? Não, não, não tem ninguém pra me buscar não, eu vou sozinha mesmo, mas eu gosto, assim não preciso me preocupar com a tireoide de ninguém, mas pode deixar que vou pagar a consulta, deixo um cheque lá com a sua secretária maquiada. Agora preciso ir, muito obrigada por todas as explicações, entendi muito sobre neurônios e sinapses, queria ter ainda aprendido mais sobre a tireoide, mas mesmo assim foi tudo muito proveitoso, e estou falando isso porque sou muito educada mesmo latejante. Pra quem? Não, não tem ninguém pra ligar não, agora estou perdendo um pouco a paciência apesar de ser muito educada, entende? O que é agora? Vai me prender numa camisa-de-força linda e lânguida, verde-clarinha? E a tireoide, como ficaria? E a tireoide, hein, doutor? Você já pensou em como ela se sentiria? VOCÊ JÁ PENSOU NA POBRE DA TIREOIDE?