quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Rebuliço do bom




Já contei que comprei uma penca de livros de filosofia na Bienal. Estou encarando Hume e, acreditem se quiser, é menos difícil do que parece. Outro dia me perguntei o porquê disso tudo e dois segundos depois já sabia a resposta. Estou mergulhando nisso porque vivo. Porque respiro.
Durante dois anos fiz parte de um grupo de filosofia e o que aprendi lá, entre vinhos sorvidos em canecas e gargalhadas nervosas causadas por loopings mentais, valeu tanto quanto o meu mestrado. Lá experimentei, de certa forma, virar as chaves do cérebro, dar linha aos neurônios, empurrar a caixola para rumos nunca antes explorados. E o que acontece é que a coisa toda causa um rebuliço do bom, daqueles que deixam a gente com fome de vida apesar, ah, apesar de toda a angústia que faz parte do jogo – eu não disse que entrei para a igreja, gente, disse que injetei Descartes e Kant na veia. E garanto, crianças, dá um certo barato. Daqueles que, a principio, não incomodam os pais (eles só não podem ser da Universal).
Mas a filosofia não é a única que abre cadeados. Hoje percebi que a yoga também é boa nesse esporte. Pela primeira vez desde que pratico, há quatro anos, consegui fazer uma invertida sobre os ombros completa, encostando os pezinhos lá atrás no chão e esticando as pernas. Foi emocionante, meninos. Para imaginar a emoção é só reler a última frase e se tocar de que eu pratico há anos, o que quer dizer que meu alongamento ficou perdido em algum momento das minhas aulas de balé da infância e que não tenho a mesma malemolência dos indianos (muita gente não sabe, mas a verdade é que eles são feitos de borracha). A minha professora, por exemplo, não tem ossos. São grandes e maleáveis cartilagens se fingindo de sólidas. Tudo ilusão de ótica.
Quando mudei de perspectiva, sentindo que poderia cair lá atrás sem quebrar ao meio, fui tomada por uma certa epifania, tal qual nas aulas de filosofia. Os olhos marejaram mesmo fechados e o coração acelerou um pouquinho mais do que o normal. Era mais uma virada, mais uma afrouxada de linha. Prenúncio de novos tempos, de novos desafios, de infinitas outras possibilidades.
É por isso que tento estudar filosofia e pratico yoga entre um projeto e outro. Para enlouquecer com classe. E corpinho enxuto.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Lusco fusco

Faltou luz ontem. Por quatro horas. Acontece muito aqui no faroeste. Então fui tomar banho à luz de velas:

Sombra trêmula na parede
Raio X molhado
Medos e tecidos
ensaboados
Nesgas de luz
enxaguadas
Tempo descendo
sujo limpo
pelo ralo
Água olhos torneiras
fechados
Mão ágil e cega
mecânica escorregadia
quente seca
nua
viva.

Pra depois acabar tudo na toalha.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Bienal, eu fui

Fomos à Bienal. Como nos outros anos, usamos a nossa tática de guerra. Alvos certeiros, metas definidas, cartões de crédito em punho e... marchamos. Três horas e três pavilhões depois, eu tinha pena do meu marido só de olhar para as sacolas que ele carregava já com alguma dificuldade. Deixamos lá as calças, as meias e só não oferecemos as roupas íntimas porque havia muitas crianças circulando.
Mas, como em todos os anos, valeu a pena. Saí de lá com o meu projeto Filosofia mais do que alinhavado. Tenho Hume e Bacon e Galilei para me ocupar por um ano pelo menos. Desde que meu grupo de filosofia se desfez, venho procurando alternativas. Como as que encontro ou são caras ou fora do itinerário (morar na Barra tem disso), resolvi apelar para o autodidatismo. Veremos. Se eu sobreviver com sanidade prometo contar um pouco da experiência. Se não, idem.
Não sei se foram os gastos que me deixaram meio alterada ou se as câimbras das pernas comprometeram o fluxo sanguíneo do meu cérebro mas fato é que fiquei muito impressionada, dessa vez, com duas coisas. Uma era o alto-falante que anunciava eventos, promoções e outras coisas que não consegui entender no meio do meu transe. Por um bom tempo me perguntei se não estava no Mundial fazendo compras de mês e só me certifiquei de que tal horror não estava acontecendo porque belisquei o meu marido e tive a certeza de que sim, ele estava do meu lado. Quando me desfiz dessa impressão incômoda, estranhei o respeitável número de pessoas tirando fotos em estandes. Até com uma armadura do estande da Biblioteca do Exército tinha gente tirando foto. Valia tudo: cadeira da Biblioteca do Senado, árvore da Floresta de Livros, cartazes da Turma da Mônica adolescente e até o balão de sinalização da entrada. Isso porque não estou contando o gramado onde estavam os tais balões e que acolhia pessoas sentadas de pernas cruzadas e dentes direcionados a algum flash.
É nobre, claro que é nobre valorizar a Bienal a ponto de registrar a própria presença no evento, num clima assim “Bienal, eu fui”, mas não sabia que ela já tinha conquistado um status, vamos dizer, turístico. Estranho, muito estranho. Pelo sim, pelo não, da próxima vez vou incluir a máquina fotográfica no meu arsenal.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Copi o quê?

Como vocês seis já sabem (piada velha, eu sei), peguei mais um copidesque. Aí vocês podem, um tanto irritados, perguntar o que é, afinal, esse tal de copidesque. Well, well, é uma boa pergunta.
O termo, como é um tanto óbvio, vem de copy desk. Surgiu nos EUA, berço do nosso chamado jornalismo moderno. Na idade da pedra, antes dos computadores, copy desk era uma mesa em formato de U, que unia o editor chefe (sentado na borda de dentro) aos copy editors, que zuniam ao redor da mesa como abelhas, checando informações, atualizando números e, entre um e outro telefonema, tomando fôlego para agüentar o deadline das matérias, a hora grave em que as máquinas de escrever teriam que silenciar e agradecer (ou não) por mais um dia de manchetes cumpridas.
Os editores de copi, vamos dizer assim, são importantíssimos até hoje nos EUA. São eles que finalizam reportagens, fazem as perguntas que os leitores fariam não fossem eles (e as respondem) e ainda atendem às exigências da diagramação, aumentando ou reduzindo textos.
O termo pegou e é muito usado também no mercado editorial. Por um tempo achei que copidesque e preparação de texto fossem coisas diferentes, mas não. Fazer um copi é preparar o texto para ser publicado, acertando as arestas, melhorando aqui e ali, mudando títulos, incluindo ou tirando trechos, enfim, editando.
E descobri que adoro poder fazer um copi entre um projeto e outro. É que para fazer copidesque não preciso descascar nenhum abacaxi. Portanto é uma espécie de trégua, com os neurônios a meia voltagem, concentrados em mexer no texto dos outros, geralmente no texto de uma pessoa que você nunca viu na vida (nem vai ver). Levando em conta que o texto já vem de um ghost writer, a distância do autor é maior ainda. É como trabalhar escondido no escuro, luzinha de abajur refletindo na tela cúmplice do monitor. Ou seja, é a maior promiscuidade. Fazer um copi, crianças, é quase a mesma coisa que entrar num bacanal. Mas não contem aos seus pais que disse isso. E não, não vou explicar o que é um bacanal.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Poesia ruiva

Um pouco de Sylvia Plath pra vocês:

Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.

Saída das cinzas
Me levanto com o meu cabelo ruivo
E devoro homens como o ar.

Sorry, guys, mas em inglês é ainda melhor:

Herr God, Herr Lucifer,
Beware
Beware.

Ou of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.

(Lady Lazarus 4)

Pra quem não sabe, Sylvia Plath foi um escritora americana que teve o descuido de se suicidar logo depois da publicação do seu romance A redoma de vidro. Tinha apenas 30 anos e depois disso os críticos se interessaram mais pela sua vida trágica do que pela sua obra. Mas os poemas que escreveu no último ano de vida resultaram num marco da poesia contemporânea, Ariel , publicado pelo seu marido infiel dois anos depois. Hoje se sabe que ele havia retirado, da publicação metodicamente organizada por Plath, poesias consideradas “pessoalmente ofensivas”. A intrusão foi descoberta anos mais tarde e o livro, felizmente, reeditado.
Ela era tão poderosa que influenciou até mesmo Hilda Hilst, a mais poderosa das mulheres no meu ideário. Hilst costumava falar da “maldição de Sylvia Plath” e dizia que seus editores esperavam ela morrer para valorizar a sua obra. Por sorte boa parte da sua coleção foi reeditada antes disso.
São muito bobas, às vezes, as razões que nos trazem alguma identificação com um poema. Lady Lazarus acima me pegou por três bobaginhas: uma é o uso do Herr, o equivalente ao Mr. em alemão. Dá a Deus e Lucifer, igualmente, um tratamento com tintas graves ligeiramente nazis, o que me soa ousadíssimo e surpreendente. Depois gosto do melódico Beware, beware, que também é algo irônico, um dedo em riste e um olho encristado em direção a algum incauto. O último e terceiro motivo bobo é o cabelo vermelho. Só porque, durante a faculdade, eu podia dizer que era ruiva. Henna vermelha da boa, natural, dessas que não existem mais. Adorava ser ruiva. Era uma transgressão de leve, uma maneira de fazer as mechas falarem o que sua dona não conseguia. Hoje sou loura e vivo ameaçando virar ruiva de novo, o que deixa o meu marido muito tenso.
Acho ainda que, na versão original da poesia, a última frase tem mais o sentido de comer como o fogo, e não como o ar. Ela devora homens como a labareda que sobe alimentada pelo ar. O cabelo ruivo levanta e devora os homens como numa chama. Tenho a impressão de que o sentido é esse, ou ao menos foi o que imaginei, mas eu, hein, quem sou eu pra me meter.

P.s Peguei mais um copidesque. Entre um projeto secreto e outro meio secreto, é o mínimo que posso fazer para entreter vocês. E também o máximo que posso fazer para descansar um pouco a cuca entre um e outro.
Cuidado com as ruivas, meninos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O lado bom da vida

Já falei muito aqui das agruras de um escritor freelancer. Mas não falei ainda das benesses.
São muitas! Como ser sempre aquela pessoa que pode ir ao supermercado, que pode chamar o bombeiro, receber o cara da Net, dar atenção ao papagaio e sacar o dinheiro da diarista. Ah, gente, é tão bom ser dona do próprio tempo! Assim a gente pode sempre devolver fita na vídeolocadora, trocar o óleo do carro, comprar pão na padaria e, luxo dos luxos, levar a colcha king size para a lavanderia.
É porque a gente trabalha em casa, bobinhos. Então é sempre mais fácil pra tudo, entenderam? Como o meu único chefe presente é um papagaio, nunca posso falar que não, não posso, meu chefe vai me matar. O meu chefe dá trabalho, é verdade, mas ainda (ainda) não me proibiu de sair de casa. Estou tentando ensiná-lo a fazer isso. Daí, triunfante, vou poder dizer que estou com penas até o pescoço, sentada num saco de ração e completamente impossibilitada de mexer os dedos bicados dos pés. Sim, porque as mãos continuarão, esquizofrênicas, grudadas no teclado, tentando trabalhar no meio de tanto.
Bom final de semana pra vocês também.