terça-feira, 30 de setembro de 2014


O nojo do mofo e o mofo do nojo
em Assim falou Zaratustra




O mofo antigo
colou-se ao novo
causando um grande bolor.
Do verde musgo saiu uma dúvida
imanente
mas logo assim que surgiu no ar
mofou também,
colando-se ao mofo mais velho.
Trata-se portanto
de um bolor
impenetrável.


O bolor amarela. Tem pêlos às vezes verdes, às vezes roxos, sendo essas cores eventualmente graduadas por uma pincelada, aqui e ali, de cinza chumbo. Posso quase acreditar que também é possível enxergar um degradê de rosa. Faço uma breve pesquisa no Google e aprendo que, para nos protegermos dos fungos e das vegetações criptogênicas, é preciso confiar na repulsa dos nossos sentidos, que soam, para o organismo, como um alarme de perigo.

Paro como se estivesse diante de uma placa de rua sem saída. Penso na garganta com nojo, travada no fundo da boca, ameaçando colocar toda a sua repulsa para fora, livrando o estômago de qualquer ameaça. Penso no esôfago tenso, preparado para a ginástica do vômito. Na saliva ácida e beligerante. Todos armados contra as bactérias ameaçadoras, que por sua vez também trabalham na mais perfeita eficiência.

Essas são ordens fisiológicas. Comandos do organismo, portanto, coordenadas ditas “involuntárias”. Engulo tudo isso junto com o Zaratustra e digiro ainda com dificuldade: são pensamentos do corpo. O nojo, antes de ser um juízo subjetivo e estético, é uma defesa orgânica. Um sinal vermelho de Pare, um alarme que seria sonoro até se pudesse, mas não é preciso. Seu pensamento é tão completo que chega a arrepiar outros pêlos, aqueles que estão no braço paralisado ante o pão bolorento. O nojo é defesa e inteligência sutil. O nojo, tenho de aceitar, também sou eu.

Ainda é difícil, hoje, e começa a parecer estranho que assim seja, pensar no corpo como alguém. “O alguém é o recheio do corpo”, diz Arnaldo Antunes. Nem só alma, nem só cadeia de músculos exercitados na academia: alguém que pensa junto comigo. Ou separado quando resolvo negá-lo, me diz a psicanálise.

Recentemente, durante a gravidez, tive a experiência de andar com patas de elefante. Meus pés, de repente, ficaram inchados e pesados como se meu corpo magro pesasse cem quilos. Era doloroso andar e as câimbras traziam com elas a angústia da imobilidade. Remédios, meias elásticas, pernas para cima: nada parecia ajudar. O desconforto era tamanho que costumava acabar em desespero. A grávida iogue e saudável estava sentindo, pela primeira vez, a inescapabilidade do corpo. Eu queria poder fugir dele. Aquelas pernas, que impediam a caminhada, não pareciam me pertencer. Senti todo o tormento de querer sair da casca e não conseguir. Eu era, mais do que nunca, todo aquele corpo inchado.

Depois de nascida a minha filha, no entanto, as dores continuaram. Passaram-se dois meses, três meses, e nada. “Eu não aguento mais”, disse a uma angiologista de olhos compadecidos. A cirurgia era até recomendada, mas não eram bem as varizes que me imobilizavam. Era o peso da maternidade, era a violência de se descobrir responsável por um outro ser para sempre, mesmo tendo sido esse ser tão desejado; era a inexorabilidade em carne, osso e choro agudo de fome madrugada adentro.

Aos poucos, o tempo se encarregou de resolver o problema com laços indizíveis de afeto e, quando consegui voltar a escrever um pouco, de novo me reconhecendo como alguém que caminha com as próprias pernas, a dor passou.

É recordando fatos tão pessoais como esses que entendo melhor o Zaratustra, ele mesmo, aliás, atiçando as minhas lembranças: “Pois no fundo se ama apenas a seu filho e sua obra; e, onde há grande amor a si mesmo, ele é sinal de gravidez: assim enxerguei.” (p. 153).

Entendo com o andarilho que desgosta de planícies que “afinal, vivencia-se apenas a si mesmo”. Então, para entender o Zaratustra, aceito que o acaso anda de mãos dadas com a vontade e me relembro. Sou eu mesma tudo o que tenho.

Nietzsche faz 22 alusões ao nojo em Assim falou Zaratustra, indica o índice remissivo. Pontuações constantes e ritmadas, como quem demarca as vezes em que a língua quer deixar de ser língua. A própria frase “Assim falou Zaratustra” cadencia a valsa do descontentamento, da busca por algo que não mofe e, assim, não cause asco. Mas será que esse algo existe?

Quando queremos que algum alimento não mofe, costumamos colocá-lo na geladeira. A criogenia aliás está aí pra isso, para escrever um parênteses na vida. O ambiente refrigerado suspende o processo natural da tal vegetação criptogênica, seja ela lá o que for. O congelamento, pausa na vida úmida, quente e coerente dos fungos, é o único capaz de evitar o nojo – e também a vida. Quando algo se congela, temos a impressão de que parou no tempo. Mas o tempo, para o andarilho que conversa com cadáveres, é outro problema insolúvel.

O tempo é pai do mofo e cúmplice do nojo. O bolor, lembre-se, é impenetrável. A dúvida, imanente. Se a vontade não pode “querer para trás”, ou seja, não pode lutar contra o tempo, a criação, seja ela de um mofo ou de uma poesia, é também assustadoramente limitada. Não há como sair do corpo, inchado ou não. Eu sou, junto com o nojo, um acaso e um destino.

“Eu, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer – é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu.”

Eis um corpo novo em Nietzsche, entretanto. Um corpo que se constrói sozinho rejeitando Deus e toda culpa e por isso mesmo não tem nojo de si. Um corpo que não mofa justamente porque, no lugar de ficar parado absorvendo organismos / valores / verdades que supostamente o alimentam, se expõe às intempéries do tempo, dormindo na floresta, subindo montanhas e enfrentando as maldades soturnas do mar. Um corpo que faz parte do mundo, que não está separado dele, e compartilha com um fungo o mistério – e as agruras – da criação. Nesse corpo está o sentido da terra. “ ‘Corpo sou eu e alma’ – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?”, pergunta o andarilho. Sim, por que não?

A criança olha tudo como se fosse a primeira vez. De certa forma ela sabe, no corpo em crescimento, que tudo que é essencial é bem sutil. Ela sabe, de alguma forma, que não há verdades e que o saber não é um valor absoluto. E é importante que assim o seja, para que ela possa errar, trocar, tentar de novo, jogar. Reaprender. É claro que é cansativo esse processo e por isso ela pede que uma historinha seja contada de novo e de novo e de novo, mais uma vez numa espécie de cadência musical. Lidar constantemente com o novo, com que não mofa portanto, é difícil e perturbador. Mas é assim, parece, que o corpo funciona. Mesmo depois de adulto. E talvez por isso Zaratustra diga que acreditaria somente num deus que soubesse dançar.

“Mas o pensamento mesquinho parece um cogumelo: rasteja, curva-se e pretende não estar em nenhum lugar – até que o corpo inteiro se ache podre e murcho de tantos pequenos cogumelos.” Eis o mofo. Eis também o corpo ressentido de um projeto que não deu certo. Deus está morto e mofado e por isso o desprezo por esse corpo que um dia acreditou tanto nele. É preciso ir além e começar de novo, como num jogo. O corpo que está para além do homem, para além de suas crenças, não mofa e não causa nojo. Parece ser mais alegre, capaz de dançar e se entreter com borboletas e bolhas de sabão. É atravessado pela vontade de criar e acostumado a mudar sempre, sem precisar se alimentar de valores e morais de outrem como um parasita. O super-homem, aqui, troca a criptonita pela naftalina, depois de também ter mudado, é claro, de planeta.

O super-homem nasce na terra e pertence à ela, é o próprio sentido da terra. É o que não mofa nunca porque está além do corpo; está além dele mesmo, além de seus limites marcadores de mofo.
O super-homem, e agora quem fala é a ex-grávida de pernas inchadas, pode ser a criança que não se deixa mofar, sempre destruindo crenças para criar algo novo, fazendo, tal qual o funâmbulo, do perigo o seu ofício. É levando tombos que se aprende a andar, e para nascer sozinho, sem cortes, é preciso querer muito e fazer esforço. É preciso, de certa forma, renegar as cesáreas e participar do próprio nascimento.

O que mofa e intoxica é achar que já chegamos onde queremos, aprendo à fórceps, sofrendo junto com Zaratustra. A criação, como a criança, habita corpo e alma e por isso mesmo deixa o sangue dos machucados tingirem os esparadrapos, para dizer o mínimo. Mas é melhor ralar os joelhos do que parar de andar, tento me convencer, de mãos dadas com a angústia. É melhor se tornar uma passagem do que um ponto final. É super-homem também aquele que esquece de si mesmo. É a obra em si a causa do artista, e não vice-versa.

A inocência está na vontade de gerar, entendo, e quem quer criar para além de si tem a vontade mais pura, diz Zaratustra. Aquela onde certezas, gostos e sentimentos não importam porque simplesmente não existem. O movimento da criação é o próprio movimento da natureza, da vegetação criptogênica portanto, valsa sem dançarinos. Nascer é querer e, inebriado, esquecer-se, para depois olhar tudo com olhos de criança: como se fosse sempre a primeira vez. Nascer e criar então são verbos parecidos e, ao que tudo indica, resistentes ao nojo.
O difícil, acrescentam os pés inchados, é não deixar que tudo isso mofe ao entrar em contato com o ar.

“Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original” (Nietzsche)

Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2011.

P.S - Desculpem a falta de notas de rodapé. Ainda não sei como fazer isso aqui no blog.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O homem é sempre o encontro com o seu mundo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014


Cascos

Os cascos foram se descolando em blocos.
Primeiro foi o do pulmão.
A crosta grossa tinha cheiro de mofo, cigarro e bombinha de asma.
Depois peguei um craquelado de costela. Não estava quebrada, mas doía.
Quando chegou perto do coração a casca toda amoleceu, úmida quente brilhante pegajosa.
Não senti nojo não, achei até bonito. De lá dava para ver o pulmão agora descascado, parecia transparente meio azul.
Tinha uma luz nisso tudo, um traço, um folguedo de raio solar, algo assim que ilumina e dá calor.
Os cascos, pesados, iam assim se descolando. Quando um soltava do outro eu escutava o estalo.
Só depois de muito tempo é que me senti casco inteira, feita só deles, mais nada.
Aé pensei melhor se queria quebrar um a um.

Essa poesia escrevi em 2004, pouco antes de saber que a minha mãe estava com câncer no pulmão. Hoje ela está curada e a minha intuição poética também.