quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O perigo da curva

Eu sei que vocês não estão lá muito interessados, mas na tabula rasa desse blog já estava a intenção de explicar o que vem a ser a vidinha de um escritor freelancer. Coloco assim no masculino porque pressuponho um grupo mais ou menos homogêneo de tal espécie, que englobaria indivíduos de todos os gêneros e subgêneros interessados em viver da letra. É claro que assim me engano. Afinal só posso falar de minzinha, mulherzinha, escritorazinha de bastidores. Mas o fato é que estou aqui pra isso, gente, pra explicar qual é a dessa mulher estranha.

Vejamos. A mulher estranha escreve dois livros ao mesmo tempo porque não vive de luz e porque a ração do papagaio está cada vez mais cara. Em sua defesa, no entanto, explico que ela tem o cuidado de separar os projetos por fases, assim: enquanto estão sendo feitas as entrevistas de um livro, o outro, com depoimentos já colhidos, pode ser escrito. Jamais dois livros, literalmente, serão escritos ao mesmo tempo. Tal insanidade até já aconteceu, mas foi por um breve período de tempo que a memória dessa mulher, muito seletiva e precavida, tratou de bloquear.

Então, enquanto o livro do gentleman de Ipanema já está sendo escrito aos poucos, o projeto do militar ainda está na fase das entrevistas semanais. Nesse meio tempo a assistente que transcrevia as entrevistas deu no pé por motivos nobres como um salário seguro, portanto as entrevistas, em gordos arquivos de áudio, seguem se acumulando no computador enquanto a mulher desamparada não arruma outra boa alma para transcrever tudo. No livro da bela menina, por exemplo, só para vocês terem uma idéia, ela conseguiu a proeza de reunir 800 páginas de depoimento. Sim, 800, não há aqui nenhum zero digitado a mais por distração. Ter alguém para transcrever tais testamentos é uma das necessidades primordiais de um escritor de dois livros, portanto, isso se ele ainda fizer questão de ter luxos como dormir e tomar banho. E paga-se bem por isso, meninos.

Mas eis que, por motivos irritantes como a imprevisibilidade da vida, um projeto está encostando no outro e as pole positions estão sendo disputadas perigosamente. O cronograma do livro do gentleman de Ipanema, por falta de brechas na agenda do mesmo, já furou. Era para o livro estar pronto a essa altura e tem-se apenas um terço dele escrito. O final do ano está chegando e a mulher começa a sentir as pontadas do desespero: sim, aquela hora grave em que os dois vão se encontrar na curva está cada vez mais possível e próxima. Até o final do ano as entrevistas com o tenente estarão terminadas e aí, crianças, aí o buraco é mais embaixo. Aí seria hora de pensar em instituições militares e não em estilo de vida carioca.

Nessas horas, entretanto, o desespero parece tornar tudo muito coerente. Hoje, depois de cansar a vista olhando para o computador na espera de um email que poderia definir a vida, a mulher decidiu fazer um trabalho de campo. O que, para o primeiro projeto, significaria andar pelo calçadão e olhar o povo se curtindo a beira-mar. Uma delícia, vocês vão dizer. Sim, uma delícia. Tão delicioso que a consciência até pesa e a mulher coloca, na mochila, pelo sim pelo não, um livro sobre o espírito militar. Então, depois de olhar a praia e tentar identificar alguns personagens e rabiscar alguma coisa no moleskine que ganhou de presente, a mulher com dupla personalidade começa a ler sobre a formação de oficiais do Exército. O mundo de lá e o mundo de cá.

É claro que tudo então se confunde e ela se pega imaginando quais seriam as regras rígidas de disciplina da praia e qual o savoir-faire dos militares. Fica pensando se a liberdade não está em limites bem definidos e não no elástico conceito de individualismo que abarca tudo (tudo pode) menos o cuidado com o outro, com o companheiro. Se não existe pelotão nem patrulha, por que o interesse pelo conjunto, afinal? Se não há trauma coletivo palpável, qual o impulso da camaradagem?

Depois de tomar uma água de coco, a mulher se recupera da confusão mental e volta pra casa com um riso de canto de boca. Estou dizendo, negada, essa mulher não bate nada bem.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Brasileiros e nem tão anônimos assim

E não é que a convocação às letras surtiu efeito?
Gabriela Gonçalves, de Vitória, mandou quase uma autobiografia, oito páginas carregadas de reflexão e coragem, e escreveu assim no email que trazia em anexo trechos da sua vida:

“Estou escrevendo há horas, não fique completamente satisfeita, mas fiz um rascunho dos meus 27 anos. Legal isso, chorei em vários trechos, relembrei fatos e filosofei comigo. Se a história não valer a pena, vai valer a experiência vivida hoje, só posso agradecer pela oportunidade.”

Eu é que agradeço, gente! Foi bonito demais ver brotar uma história assim de pronto, no impulso dos dedos correndo pelo teclado. O resumo da vida de Gabriela, hoje grande executiva e autora de blog, é o primeiro texto do baú. Está guardado pelo Reciclando Mentes com todo o carinho e cuidado.
Para quem ainda não sabe, o instituto recém criado é pautado no construcionismo social, conjunto variado de contribuições teóricas que tem ganhado espaço na psicologia nas últimas décadas, inicialmente na psicologia social mas tendo se espalhado também para outros campos como o da psicoterapia. Seus principais autores afirmam que o construcionismo se articula em torno de quatro idéias centrais: a ênfase na especificidade cultural e histórica das formas de conhecermos o mundo; o reconhecimento da primazia dos relacionamentos na produção e sustentação do conhecimento; a interligação entre conhecimento e ação; e a valorização de uma postura crítica e reflexiva.
A primeira das quatro idéias foca a atenção no contexto, na nossa janela de mundo, na nossa bossa. A segunda, muito importante, fala da importância de se olhar com calma e fundo para o outro, prática que, numa sociedade cada vez mais individualista, parece infelizmente estar fora de moda. A intenção do projeto é justamente resgatar esse olhar e assim trabalhar pela redução da violência, levando em conta as outras duas premissas, que basicamente dizem que não basta saber: é preciso pensar sobre o saber para depois agir.
Na prática, isso significa formar gestores de ONG em terapia narrativa e outras ferramentas capazes de transformar histórias sociais. No coração, isso quer dizer parar de pensar que nada tem jeito, deixar de lado a casca do doente e olhar a doença por outros ângulos, com gana de tirá-la do foco e dar espaço à vida. Quer dizer também, no final da linha, evitar o bombardeio de helicópteros.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Anônimos e brasileiros


Já me disseram os búzios que sou de Oxalá. Oxalá, me explicou um amigo que sabe tudo de candomblé, é o pai maior, que tem a energia da paz e da criação e está sempre em busca do respeito. É muito bom ser de Oxalá, diz ele. Mas, como tudo na vida, também tem sua desvantagem. É que Oxalá é meio lento, é do ar, da dinâmica rarefeita do devagar quase parando. Quando soube disso fiquei ainda mais baiana por dentro, meio chocha, pensando “pô, logo eu, ex-jornalista da ativa, cumpridora de prazos impossíveis?”. É, neguinha, você mesma.
Neste sábado tive a confirmação. Devo ser meio marcha lenta mesmo, ao menos em alguns níveis, ou naqueles mais importantes. Na verdade, como diria uma amiga minha, meu ritmo é praticamente o de um cágado em dia de sol. Talvez até Caymmi parecesse um estressado ao meu lado. Anteontem, ao ler o Prosa & Verso, tive a nítida sensação de ter perdido algum bonde enquanto dormia de olhos abertos, pensando na morte da bezerra (ninguém até hoje me disse do que ela morreu, gente), sonhando acordada no mundo da lua. Estava lá, no subtítulo: “O teórico francês Philippe Lejeune fala sobre a associação criada para ler e comentar autobiografias de gente comum”.
Peraí, essa idéia era minha! Ô meu deus, que desânimo, velho, que preguiça. O que posso fazer se tiveram as minhas boas idéias antes de mim?
Depois que lancei o livro da Ana, fiquei muito impressionada com a quantidade de pessoas que me procuraram querendo contar suas histórias. Eram histórias de gente comum, e é impressionante como elas podem ser mais interessantes do que a ficção. Algumas mais outras menos, é claro, mas tem sempre um fio que pode ser puxado, sempre uma esperança de publicação. Sem querer desperdiçar tais histórias, pensei em criar para a minha editora o projeto de um selo baseado exatamente nisso, em histórias de gente comum, de anônimos que tinham muito a dizer e a ensinar. O nome do selo seria algo como Anônimos ou mesmo Histórias de gente comum, e poderia ser organizado por temas como Drogas, Amor, Superação etc. Devo ter pensando nisso por alguns dias e depois bateu aquela dúvida, aquela insegurança, aquele “será que é bom isso?”, e acabei deixando pra lá. Em defesa de Oxalá, também é verdade que deixei o assunto de lado porque me envolvi em outros trabalhos e coloquei então a idéia na gaveta, à espera de uma brecha.
Mas agora vejo que o erro, ou o descuido, foi ter pensado nessa idéia comercialmente. A sacada do francês é não só muito mais coerente como mais proveitosa: a Associação pela Autobiografia e pela Preservação do Patrimônio Autobiográfico (APA), instituição fundada na cidade de Amberieu-em-Bugey em 1992, tem a linda missão de receber, ler, comentar e preservar todo e qualquer escrito autobiográfico que lhe seja encaminhado. Entre cartas, diários e narrativas, recebem cerca de 180 textos por ano. A idéia foi inspirada numa localidade italiana que se autonomeou Cidade do Diário. Anualmente é promovido por lá um concurso nacional de escritas autobiográficas, o que engorda o acervo que já conta com mais de cinco mil itens. Quando conheceu a cidade, o professor Lejeune, então já autor de O Pacto Autobiográfico (traduzido pela UFMG), ouviu o clique e decidiu levar a idéia para a França.
De certa forma, ainda sem saber bem como, é o que o instituto Reciclando Mentes vem ensaiando fazer nos trópicos. Já falei sobre ele aqui e quem quiser conhecer o trabalho baseado em terapia narrativa pode acessar o site ou ler o post Reciclando.
Mas saber que escrevi um projeto para a instituição não me faz perder a sensação de que preciso, ai ai, recuperar o tempo perdido. Imaginem a quantidade de narrativas incríveis que não estão por aí escondidas, nas favelas, nos subúrbios ou nas varandas da zona sul, nas casas quietas de idosos imigrantes, nas ruas. O diários não escritos do Brasil dariam um belo compêndio da história latino americana.
Então, crianças, para retomar o pique, estalar os dedos, arregaçar as mangas e enxotar o pai maior marcha lenta, convido todos a me mandarem cartas, diários, pequenos textos autobiográficos, argumentos, sinopses baseadas em histórias reais, o diabo. O meu compromisso será recolher e organizar todo o material e trabalhar, junto ao Reciclando Mentes, numa compilação de vida e forma brasileiras.
Falo sério. Abram as gavetas. Quem estiver interessado que se manifeste, sou toda ouvidos.