tag:blogger.com,1999:blog-90639520857028135672024-03-13T00:46:48.065-03:00Casa do MoinhoEscrever é conversar com o mundoCarla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.comBlogger258125tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-23869409566146594262017-11-10T15:40:00.000-02:002017-11-28T17:18:13.491-02:00<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjhbC-HMX0UEbk2mRvi_HyGushTlnonsA2xL88PM1CAiosstpDGMIaHDzc91v9pipc519l2JXWpNMpUszLAev_WJWn7tkOMpLQeEU5GX4zg-sIinsct9vyhdSPPENfKuNsvjRQbp4cg2Z_j/s1600/oconvidado.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjhbC-HMX0UEbk2mRvi_HyGushTlnonsA2xL88PM1CAiosstpDGMIaHDzc91v9pipc519l2JXWpNMpUszLAev_WJWn7tkOMpLQeEU5GX4zg-sIinsct9vyhdSPPENfKuNsvjRQbp4cg2Z_j/s320/oconvidado.jpg" width="320" height="209" data-original-width="380" data-original-height="248" /></a></div>(Mal-entendidos do corpo. Adriana Varejão)<br />
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Equívocos, carimbos e humanimalidades<br />
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Isso pode parecer confuso para além do título. Não tem início nem meio nem fim e ainda por cima começa sei lá porque com um carimbo, com aquele momento em que a tinta se encontra violentamente com o papel. Não tentem entender, concordar, discordar, curtir ou dar uma opinião. É que ando carente de carimbos, só isso, preciso de um encontro com eles mesmo que seja a tapas.<br />
Tenho arrepios de prazer só de pensar naquela esponja molhada, maciez escorregada no baque seco e surdo da madeira, intersecção de texturas e textos, ponte entre o real e o simbólico. Essa ponte existe de verdade, não estou inventando, dá pra ver de vez em quando, num relance, coisa rápida, mas dá. Estou com saudades dela, sem ela a vida fica estranha, palavra sem dicionário, sapato sem sola, xícara sem asa, e isso parece mais uma letra da Adriana Calcanhoto, como todo respeito a ela, que sabe que nada ficou no lugar. <br />
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Faz alguns meses que espero por um carimbo, o que me deu tempo pra pensar nisso tudo. Li algumas coisas nesse intervalo. Peguei o Giorgio Agamben, o que é sempre um bom começo. Ou fim, não sei. Em O Aberto, ele fala sobre a diferença, não tão simples quanto parece, entre o homem e o animal. O animal, esse que parece tão diferente do homem, tem o caráter de não-ter-que-ver. Seu ente, seu ser, é aberto para uma opacidade.<br />
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Por isso uma traça, essa que também gosta de papel, caminha para o fogo mesmo sabendo que vai se queimar. Seu conhecimento, como o conhecimento místico, lembra o filósofo italiano, é a experiência de um inconhecimento e de um velamento enquanto tal. A pobreza de mundo, a cegueira que o cerca, é característica do animal. Ele vive na não-relação.<br />
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O animal não sabe o que é um equívoco, mas ando me perguntando se nós também não estamos esquecendo o que vem a ser isso. Porque um equívoco não é bem um erro, é algo que toma um caminho inesperado, um escrituário que desconhece ou não gosta de tremas, um carimbo que escorrega e borra o canto da página, uma relação com o mundo, uma marca no mundo.<br />
Pois bem, estamos tomados de equívocos, o tempo todo, e sem eles não haveria evolução humana. Somos alimentados por eles a granel, todos os dias, mas suspeito existir uma teia que os camufla, provavelmente pensando em vendê-los no comércio paralelo.<br />
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Essa teia-rede, que não é de aranha, também esconde paradoxos e esbarrões com o tal mundo. Porque a aranha nada sabe da mosca nem pode tirar suas medidas, no entanto determina a amplitude das malhas da sua teia de acordo com as dimensões do corpo da mosca e confere a resistência dos fios à proporção exata da força de embate do corpo da mosca em voo. Ela não se equivoca justamente porque o seu mundo e o da mosca são incomunicantes, apesar de sintonizados a ponto de parecerem uma partitura. Elas se entendem sem equívocos porque comungam da mesma cegueira. <br />
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Nunca fomos expostos a tantas imagens, diariamente, mas nunca estivemos tão cegos. Efeito colateral básico de toda nova tecnologia, já dizia o guru McLuhan: ao mesmo tempo em que ela amplia nossos sentidos, também limita-os, tornando-os tão obsoletos quanto um iphone da última estação. Ou alguém ainda sabe de cor os telefones dos amigos mais próximos?<br />
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A minha memória não sabe mais nem meu nome direito, agora que pedi uma segunda via da certidão de nascimento e descobri nunca ter tido o trema que marcava meu sobrenome, a chuva do u que molhava minha casa do moinho desde a alfabetização, o que tem a ver com a história do carimbo, mas deixemos.<br />
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Há mesmo quem não consiga mais ler livros com começo meio e fim e que tenha mudado inclusive a rota da leitura: não mais da esquerda para a direita, mas de cima para baixo, em saltos de aranha, abocanhando as moscas mais gordas aqui e ali, sem ordem alguma, randomicamente. <br />
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A rede nos morde diariamente e come nossos cérebros aos poucos. Posso sentir isso enquanto escrevo aqui e agora mas absolutamente fora do tempo, engolida pelos sinais de mensagens que chegam sem pedirem licença ou ao menos oferecerem um carimbo (ou um trema).<br />
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Que a internet, as redes sociais e os famigerados grupos de whatsapp são um perigo para os escritores até a mosca sabe, mas não estamos falando apenas de distração ou falta de foco. É um cérebro sendo comido por dentro, em cegueira comunicante com outro cérebro que não usa a mesma linguagem do humano.<br />
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Talvez seja um erro e não um equívoco. É um final de linha, não uma mudança de caminho. Algo está acabando de muito importante, e pode ser que esse algo seja o encontro com a terra do filósofo Heidegger, onde o ente existe na forma do poder-ser, onde o tédio, arqui-inimigo das redes sociais, é condição de potência pura, de recusa a todas as possibilidades específicas concretas, poder que surge a partir do <i>poder não</i>.<br />
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Poder não ser um animal ou um deputado misógino hipócrita, por exemplo, poder não ser cego nem surdo e assim olhar ao redor de novo, como se fosse a primeira vez, apenas sendo, mantido em suspenso no nada. O que costuma resultar dessa hoje estranha experiência é um equívoco, ou o que também pode ser chamado de arte, contraste entre o mundo e a terra, entre o aberto e o velamento. São equívocos, paradoxos e aporias, coisas esquisitas sem definição precisa mas que falam do humano, daquele que se diferenciou do animal pela linguagem e pelo simbólico. <br />
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A ponte entre o homo erectus sem linguagem e o homem inserido no simbólico, o <i>missing link</i> de que fala Agamben, continua sendo escrito pela antropologia, mas parece não existir na rede. E por não aparecer dá a entender que não existe, empurrando os tais paradoxos e a angústia ¬("estar entregue a algo que se recusa", como a animalidade) para debaixo do teclado. Sem fricção não há encontro, sem encontro não há ansiedade. <br />
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Mas eis que a humanidade ainda é animalizável, ambígua, corrupta, falível, cheia de tropeços. Pede carimbos, encontros com o papel e com o chão, encontros sólidos e neuromusculares capazes de preparar o cérebro para o imprevisível, o pânico, o não-saber. Já atravessado pelo nada, pede o olho no olho porque, tela a tela, o desaparecido do missing link desaparece. Vê-se então muita coisa para poder não-ter-que-ver.<br />
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Lembro de uma conhecida que contava ter sentido, enquanto cortava uma carne crua para fazer bife, o momento exato em que seu marido foi esfaqueado no outro lado da cidade, num assalto.<br />
Talvez seja por pouco tempo, mas a sobriedade humana ainda é feita de carne e a palavra ainda depende do equívoco (velamento/ desvelamento) que acontece lá fora, no diálogo. Aquele mesmo que traz carimbos, de vez em quando. Ou tremas. <br />
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(Agamben, Giorgio. O Aberto - O homem e o animal. Portugal: Edições 70, 2002)<br />
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Carla Muhlhaus é escritora e perdeu recentemente seu trema. Antes era Casa do Moinho, mas, perdidos os dois pontinhos, virou apenas um sobrenome sem qualquer significado. Nem casa do moinho, nem casa do lixo. Apenas um nome humanamente equivocado.<br />
Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-28921655821611212512016-09-19T15:31:00.000-03:002016-09-19T15:31:17.246-03:00<br />
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Sumidouro é quando a terra se encontra com a água de verdade, num daqueles encontros de namoro urgente que ninguém esquece. É quando a água do rio é sugada pela amante, puxando-a para o solo, levando-a pra dentro, pra dentro, pra dentro. Some tudo e vira ouro, outro, sumidouro, somado. Aquele ator e palhaço lindo foi embora assim, puxado pelas canelas num emaranhado de forças da terra que só os índios conhecem. <br />
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Rio é sempre muito perigoso. Tem correnteza, tem tromba d'água, tem pedra que desliza. Quando eu era criança andava muito pelo riacho, negociando cada tropeço com o limo, cada pedra com os joelhos sempre ralados. Pulava de uma pedra pra outra de chinelo e só não batia a cabeça lá embaixo perto da correnteza porque os pajés já estavam atentos.<br />
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Sumidouro engole tudo: gente, suspiro, sonho, ideias. É pra lá que vão os projetos mais mirabolantes e acalentados da sua vida depois que você tem um filho, por exemplo. Você pensa num gatilho para um texto enquanto arruma a mochila e, antes de saber que teve uma ideia, sente que ela caiu no sumidouro. Você acha que conseguiu entender os dois últimos capítulos do livro de filosofia, mas isso foi dois minutos antes de correr atrás de mais um joelho esfolado e deixar tudo escorrer pelo sumidouro de novo.<br />
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Vai tudo pra lá: tempo, notas mentais, notas de pé de página, fichamentos, emails, poesias, sinopses, contos, lendas de rio. Porque o sumidouro, cabeça invertida para o mundo, é sedento. Quer saber tudo o que acontece aqui em cima e quer leitura boa, quer palhaço bom, quer coração translúcido generoso, quer braço de gente que não leva ninguém junto na hora ruim, que abre o peito, olha triste e longo enquanto espera o inevitável com coragem. Espera ser sugado para a terra, para o ser-no-mundo, para a argila, para virar limo verde cantante, para ver pequenas sereias, quem sabe, girinos brilhantes, para viver um tempo de argamassas revolvidas com o espaço.<br />
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E então nesse redemoinho estranho da vida você vê sua filha desenhando numa folha de árvore feita com papel verde. Cada folha leva um sonho depois colado na árvore lá do evento da Vila Sésamo, aquele grupo que provavelmente vai para o sumidouro da filha, mas que eu queria muito ver nadando na sua superfície. Perguntei qual era o sonho dela, e quando ela acabou de falar eu mesma já era um riacho chorão. Era fazer o pai feliz. Sim, o pai, que não é palhaço nem ator, mas que escreve para atores e quem sabe outros palhaços, e que por um bom tempo esqueceu o nariz vermelho na gaveta. Na gaveta, não no sumidouro, porque acabo de entender que só as melhores coisas vão para o sumidouro, e é mentira que elas ficam perdidas. Os sumidouros são as usinas de significado da vida, está tudo lá embaixo. Eles centrifugam sentidos no centro da terra e devolvem tudo à superfície, desejos macerados, diluídos, decantados. O que agrada à terra volta para a margem. Narizes de palhaço, por exemplo.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-61337684263206198122016-07-14T16:09:00.000-03:002016-07-14T16:09:02.675-03:00<br />
Naquele dia ele ia conseguir. Não passava daquele dia. Vinha se preparando há meses. Respirou fundo, sacou o celular do bolso, abriu a agenda telefônica. Bastava encostar no número ligeiramente, tão simples, tão rápido. Você consegue, pensou, nem precisa discar nada, é rápido como tirar um band-aid, você consegue.<br />
Não conseguiu. Bateu taquicardia, suor frio, tremedeira. E se engasgasse? E se perdesse a voz ou, pior, ficasse com uma voz esganiçada de cantor de chuveiro? Ah, mas não, não podia desistir. Havia prometido a si mesmo que, se não ligasse naquele dia, jogaria o celular na privada. Escreveu essa promessa, até. Na página de notas do celular. Olhou para o espelho, disse Há! e ligou.<br />
Fala Pedrão!<br />
...<br />
Alô?<br />
...<br />
Você tá aí, cara?<br />
...<br />
Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?<br />
...<br />
Desliga aí, vou te ligar para ver se melhora a ligação.<br />
Mauro, melhor amigo de Pedrão, amigo de infância, do peito mesmo, nunca mais conseguiu falar com ele. Recebeu uma mensagem no whatsapp, no entanto, onde Pedrão explicava estar pegado no trabalho, que no momento em que ligou viu que teria que desligar, que pô, saudade irmão, a vida tá corrida, como vai a Belinha? Vamos combinar um churrasco, vamos marcar aí.<br />
Pedrão não recebeu resposta. Hoje vive corroído com a ideia de ter magoado o amigo de fé, irmão camarada, seu brother de sempre. Prometeu a si mesmo que escreveria uma mensagem para ele no inbox.<br />
Depois dessa, Pedrão não falou com mais ninguém ao telefone. Acha íntimo demais. Falar ao telefone é uma invasão de intimidade que ninguém merece. Muito menos os amigos.<br />
Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-53984096762323617552016-02-10T13:48:00.001-02:002016-02-10T13:54:38.974-02:00Tim-tim!<br />
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Acho importante ensinar boas maneiras. Comer de boca fechada, manejar bem os talheres, juntá-los depois no prato antes de limpar a boca e tirar delicadamente o guardanapo do colo. O problema é que ensinar isso a uma criança de três anos é difícil, porque pode ser difícil ensinar qualquer coisa a uma criança por mais de dez minutos. Ou segundos. Então a gente se diverte. Faz piquenique para servir os bonecos com maestria, colocando toalha bordada e um pratinho para cada um com uvas, bananas e morangos, ensina todo mundo a usar o guardanapo, convida o amigo do amigo e, pra comemorar a produção toda, faz tim-tim com os copos. Tim-tim!<br />
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Fazer tim-tim agradou muito. O pessoal todo, da Jessie à Cinderela, do Buzz ao Mickey, achou essa coisa de tim-tim muito divertida. Começamos a fazer tim-tim também de picolé, de maçãs, de milho cozido, de revistinha, de chave, de computador, de... língua. Ah, sim, é difícil ensinar que dar língua, o que é muito engraçado, deve ser feito só de mentirinha, em casa, com os pais. Por que? Ah, porque o moço da rua pode não gostar. Por que? Porque ele não acha engraçado como a gente acha. Por que? Porque ele não te conhece, não é seu amigo. Por que? Porque ele é estranho, e por isso você não dever dar trela pra ele. Por que? Porque... cadê o tim-tim? Vamos fazer um tim-tim?<br />
Nesse Carnaval, dei vários tim-tins de língua. Foi a maior esbórnia. <br />
Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-56104587252148650812015-06-22T11:20:00.003-03:002015-06-22T11:20:29.122-03:00<br />
A culpa e a tireoide<br />
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"Se você tem um problema na tireoide, a culpa é sua?", ele perguntou assim como quem fala com uma criança que acabou de pedir desculpas e sair acabrunhada do castigo. Castigo, não, cadeirinha do pensamento, ou melhor, da reflexão, porque senão pensamento fica parecendo castigo, então é melhor refletir. Acenei que não com a cabeça, não tive coragem de verbalizar. Vergonha alheia às vezes é maior do que a própria vergonha que, aliás, surpreendentemente, inexistia naquele momento. "Então. Se você tem algum problema na cabeça (não lembro se ele falou cérebro ou cabeça), também não é culpa sua", e continuou a apresentação, bem didática, feita especialmente para idiotas. Foi aí que comecei a pensar que, bom, talvez eu seja idiota e mereça estar ouvindo uma apresentação dessas. Quer saber? Talvez eu tenha culpa, sim. "Tenho culpa sim, doutor". "Por que você acha isso? Estamos falando de uma doença, que acomete qualquer um". Não, querido, eu tenho culpa, não da tireoide, mas da cabeça que lateja. Ela não é minha? Então. Ou tem alguma coisa lá dentro que a faz latejar? Lateja em baixo, perto da nuca, depois passa pelo zumbido no ouvido direito e vai parar a latejação entre as sobrancelhas. Sabia, doutor, que só há pouco tempo aprendi que se escreve sobrancelha ao invés de sombrancelha? Não é minha culpa? É que eu sempre pensava em sombra, sabe? A sombrancelha fazendo sombra para os olhos, protegendo do sol e da poeira etc, mas principalmente protegendo do mundo mesmo. "Por que você acha que tem que se proteger do mundo? ". Olha, doutor, o senhor me desculpe, o senhor é letrado e tal, mas essa pergunta é muito boba, não tem nem como responder. Nem a tireoide encara o mundo de frente, doutor. Se não é sombrancelha o que ela tem é alguma viseira qualquer, um óculos escuros, uma burka, sei lá, qualquer coisa. A seco, de cara limpa, ninguém aguenta."Há quanto tempo você pensa assim?" Como assim? Uai, desde sempre, devo pensar assim desde que nasci, é que não lembro. Pergunta mais estranha. Olha, me desculpe, mas tenho que dizer que estou meio decepcionada, tinha o senhor em mais, como dizer, alta estima. Acho que essa consulta foi um erro. Foi bom ter te conhecido, um prazer, seu consultório é muito bonito apesar de não ter janela e nem um quadro sequer e a sala de espera parecer um intervalo do nada pintado de verde claro, e não pensa que não reparei que a minha cadeira é mais baixa que a sua, esse recurso é batido, e não tem nada na sua mesa, não é? Nem um porta-retrato, uma caneta, um post it escrito Vai à merda, nada, tudo muito asséptico, muito bonito mesmo. Um brinco. "Olha, preciso fazer uma prescrição pra você". Só se for para a tireoide da sua mãe, meu filho. Porque eu tenho culpa sim e vou expiá-la lá fora, no mundo sem bula e sem sombrancelhas. Oi? Não, não, não tem ninguém pra me buscar não, eu vou sozinha mesmo, mas eu gosto, assim não preciso me preocupar com a tireoide de ninguém, mas pode deixar que vou pagar a consulta, deixo um cheque lá com a sua secretária maquiada. Agora preciso ir, muito obrigada por todas as explicações, entendi muito sobre neurônios e sinapses, queria ter ainda aprendido mais sobre a tireoide, mas mesmo assim foi tudo muito proveitoso, e estou falando isso porque sou muito educada mesmo latejante. Pra quem? Não, não tem ninguém pra ligar não, agora estou perdendo um pouco a paciência apesar de ser muito educada, entende? O que é agora? Vai me prender numa camisa-de-força linda e lânguida, verde-clarinha? E a tireoide, como ficaria? E a tireoide, hein, doutor? Você já pensou em como ela se sentiria? VOCÊ JÁ PENSOU NA POBRE DA TIREOIDE?Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-77101701422868841632015-03-19T15:53:00.003-03:002015-03-19T15:53:53.816-03:00Gosto de Abba<br />
embalando você<br />
no carro-bibi.<br />
Gosto de te ver dormindo<br />
olhos fechados<br />
boca distraída<br />
Sonho no meio<br />
do caminho.<br />
Vidro fechado pra fora é<br />
porta aberta pra dentro.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-58664807188148251612015-03-09T11:16:00.001-03:002015-03-09T11:16:01.687-03:00Quarenta, eu?<br />
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Pensei em descalabro, sei lá porquê. Eu já sei de tão poucas coisas que não vou me preocupar com a origem desse descalabro aqui. Quero descalabrar alguns enlatados internos. Meus 40 anos, por exemplo. Falta um mês.<br />
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Aos 40 anos, eu queria estar no topo do mundo. Ser poliglota, ter viajado por todos os continentes e saber fazer a melhor bruschetta do planeta – de preferência evitando rimas infantis. Saber cozinhar arroz tailandês e dosar bem o açafrão. Saber escolher vinho, receber, fazer imposto de renda. Aos 40 eu também já teria uma casa com quintal, onde a minha filha poderia criar um cachorro. Já tenho a filha. Falta a casa e o cachorro.<br />
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Já plantei uma árvore (um pinheiro, na verdade) e escrevi mais de um livro. Juntando com a filha, era para eu estar satisfeita e sacar a minha carteirinha de adulta no consultório da analista, mas a criança continua aqui, pulando num pé só. Agora, só porque eu falei isso, ela está pulando com os dois.<br />
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Criança não gosta muito de responsabilidades. Quer dizer, não na hora errada, que é aquela em que se quer fazer outra coisa. E é difícil conciliar a hora em que se quer fazer alguma coisa com a hora em que se deve, por coincidência, fazer essa mesma coisa que se quer fazer. Sim, é difícil de entender pra mim também. Eu ainda não tenho 40 anos. <br />
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Agora, por exemplo, eu quero apenas que o mundo seja menos chato. Que tenha menos contas para pagar, menos horários a cumprir, menos eletrodomésticos quebrados e mais caixas eletrônicos. Queria ter um caixa eletrônico embaixo da minha cama. Queria dormir e acordar com o dinheiro na cabeceira, na conta certa, sem precisar de troco. Eu nunca mais esqueceria de pagar a diarista, por exemplo. Estou pedindo muito?<br />
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Ouvi dizer que a vida começa aos 40. É mentira. Aos 40 a gente começa a morrer, e isso porque a ideia da morte sai debaixo do caixa eletrônico e se esconde no travesseiro recebendo a guarida do exército de ácaros, porque você ainda não chegou na idade de aceitar aquelas capas antialérgicas que transformam o travesseiro num tijolo. Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer, entende a espuma, mesmo na voz abafada pelo lençol. Sim, querida, vamos todos, você grita dormindo. Mas quando nasce um filho a gente morre mais. Com mais intensidade, e mais rápido também. Então, aos 40, a vida se torna uma corrida contra o tempo. <br />
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Se não dei certo até agora como escritora ou bailarina, já era. Se não fiz aquela apresentação de sapateado inspirada no Gregory Hine de O sol da meia noite, já era. Se não aprendi andar a cavalo, lá lá lá lá lá. Minha lombar, a essa altura destruída, geme só de pensar na ideia. Esquiar então dá vontade de rir. E quem ri, dessa vez, são os joelhos.<br />
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Há uma velha ao meu lado. É estranho, porque ela se parece comigo. Vivo dizendo para ela endireitar os ombros e relaxar o pescoço, mas acho que ela já não escuta mais. Vive curvadinha, com os pensamentos enrugados e mãos paralisadas ante o teclado. Ela quer escrever alguma coisa, talvez algo sobre essa corrida boba contra o tempo, mas obviamente não consegue. Pergunto se ela quer ajuda e relembro que ela não escuta. Gesticulo, então, e ela apenas me olha com olhos turvos. Em algum momento do passado ela quis me falar alguma coisa, provavelmente algo sobre o tempo que se perde correndo contra o tempo. Mas ela cansou e hoje não quer falar mais nada.<br />
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Eu devia tê-la escutado antes.<br />
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Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-87516695721056124252014-11-17T17:13:00.000-02:002014-11-17T17:15:11.267-02:00<br />
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Inhotim tem um andar sincopado. Traz uma pausa aos passos e passos à pausa. Mistura arte botânica com arte contemporânea, bromélias com esculturas, caminhos e fissuras. São 110 hectares, a gente logo aprende. 10 mil metros quadrados de espaço mágico. Espaço suficiente para entender o que Heidegger quer dizer com... espaço: o próprio espaço em si é o <i>abrir espaço</i>, é dar fôlego e licença para a concretude e, consequentemente, para a nossa relação com o mundo. Em Inhotim caminha-se muito. Heidegger diz: Viver é caminhar. Sincopadamente. <br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSZgFJzLkebNXSVauXIPMEzdF9P7XMTL0-N3PMKC7yf3i4ex4Jd0OZ3C_3T4RYr4_iwWIEpheHoOhwKRdB5BIFY5ZUT8pK_jpSNnq4TQo6KIimiAdvpBjKvbsxmbN8BaCytnNbGeW8Dmu9/s1600/foto-19.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSZgFJzLkebNXSVauXIPMEzdF9P7XMTL0-N3PMKC7yf3i4ex4Jd0OZ3C_3T4RYr4_iwWIEpheHoOhwKRdB5BIFY5ZUT8pK_jpSNnq4TQo6KIimiAdvpBjKvbsxmbN8BaCytnNbGeW8Dmu9/s320/foto-19.jpg" /></a></div><br />
<a href="http://inhotim.org.br">Inhotim</a>, Brumadinho, BH.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-28920561389162328762014-10-23T12:09:00.000-02:002014-10-23T12:09:23.374-02:00<br />
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<b>Entre Homero, tijolos e azulejos</b><br />
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"Ah, vai ler Homero!", disse a professora, e a icônica frase acabou batizando, no whatsapp, um grupo de conversa dos alunos. Tempos modernos. Era um desabafo, a frase, um desencanto com a juventude que só conversa via multiplataformas eletrônicas, olhos grudados no celular, dedos ágeis e distraídos deslizando pela tela. Mas era também um comando e, apesar de já ter me distanciado das gerações z, y e de outras cujo alfabeto provavelmente nem conheço, obedeci o timbre imperativo. Comprei a edição recomendada da Odisseia e me aventurei pela jornada de Odisseu.<br />
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O ímpeto venturoso, no entanto, durou pouco mais de dez páginas. Ainda no Canto I me perdi na cólera de Posido, não sabia mais quem era Orestes, quem Hermes, ou quem fora gerado pela ninfa Toosa, filha de Forco, e, principalmente, quem queria se vingar de quem e porquê. Apesar de me sentir envolta numa espécie de bruma melodiosa que a literatura contemporânea desconhece, por ora precisei, infelizmente, abandonar a nau.<br />
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Não é culpa de Homero, é claro. Talvez a culpada seja a minha memória, deficiente desde que inventaram o google, o gravador digital, os aplicativos de notas e lembretes e até mesmo o whatsapp. McLuhan não poderia estar mais certo: a tecnologia digital é, sim, ao mesmo tempo, uma extensão e um aniquilamento de nossos sentidos e capacidades. Lembro de que, na pré-adolescência, sabia o telefone de todos os meus amigos de cor. Era outra, certamente, a minha memória, sem a flacidez dos neurônios atuais ¬– esses que, a fórceps, nascem para o whatsapp e afins.<br />
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Acabrunhada, paro a leitura e saco da bolsa ele, o senhor dos tempos, o aparelho móvel indispensável. Passo os dedos pelas fotos. Uma delas, tirada numa loja de móveis por pura atração estética, parece querer me dizer alguma coisa.<br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj8589njPUkAqAFgrSJGdNEHA9NCieBArespmVzdoGquFuL2Hf3ccXmxKR-prn3o3Mm0QyFPTFud6N59KO3ReKWxPCzmPNdC3O6lbLxtzLO2ctXH5UwPjP2pUHP2fRlc4wucLJesqX7P6Ro/s1600/foto-14.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj8589njPUkAqAFgrSJGdNEHA9NCieBArespmVzdoGquFuL2Hf3ccXmxKR-prn3o3Mm0QyFPTFud6N59KO3ReKWxPCzmPNdC3O6lbLxtzLO2ctXH5UwPjP2pUHP2fRlc4wucLJesqX7P6Ro/s320/foto-14.jpg" /></a></div><br />
Sim, há tijolos dispostos nas prateleiras. Como livros esperando por um encontro, eles habitam o espaço com naturalidade. E escrevo habitam porque pesquiso, no google, a etimologia da palavra decorar. Descubro que nela está presente a palavra grega "doxa": senso comum, opinião, doutrina. Paráfrase, também, vejo no meu caderno: reescritura, tradução na própria língua. Os tijolos estão ali para serem lidos, seguidos e coabitados em nossa rede de (in) certezas. Eles decoram e explicam a contemporaneidade avessa à Odisseia. Eles nos habitam e nos doutrinam.<br />
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Há um cheiro de abstrato nesse concreto exaltado. Se folheados, os tijolos não nos contarão tramas de deuses e mortais embrumados em melodia poética brilhante, mas nos dirão muito, por exemplo, sobre Descartes. Se no mundo grego os deuses convivem com os homens e, logo, não há nada que seja sobrenatural (não há nada que não faça parte da natureza), no mundo cartesiano e pós-cartesiano, se é que se pode dizer assim, não há nada que não seja matéria nem pensamento, nada que recupere a cisão entre homem e mundo. Sem prateleiras para o que não vem da razão.<br />
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Nada, nem mesmo os tijolos, estão sujeitos ao devir. E por isso mesmo, talvez, eles precisem mudar de lugar. Quando tudo parece tão cimentado, a parede sente vontade de virar do avesso e mostrar seus bastidores. Escrutinamos o tijolo por pura falta de alternativas ou porque na argila também estejam, queimados no forno industrial, nossos paradigmas. O mais profundo é a pele.<br />
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Passamos do homérico mundo circular do devir, sujeito sempre ao movimento de vir a ser, ciclo de nascimento e morte eterno, ao mundo do ser já fixado, emassado, construído ¬– finito. É essa marca da mortalidade do ser e do mundo que escorrega para as prateleiras ao menor descuido. Gestos artísticos, é o que parece, são resistentes ao cimento do indefinido.<br />
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É sabido que, depois de Descartes, a razão científica foi colada à experiência de tal modo que se tornou empírica. Mas não deixou de ser abstrata. O dinheiro e o H2O da água são abstrações reais, lembra Marx, pra quem a ciência moderna talvez não tivesse sido possível sem o capitalismo. Vivemos abstrações encarnadas num mundo sequestrado pela mecânica e é por isso que, mesmo acariciando a parede com as mãos como as crianças fazem com propriedade, não conhecemos a parede. Também deve ser por isso que a minha filha de dois anos, com alguma frequência, tenta literalmente entrar nos seus livros abertos no chão, pisando neles e encaixando os pés dentro das páginas. Respeito o momento. Entendo a necessidade latente, hoje, de entrar em algum mundo, qualquer um, já que estamos sempre do lado de fora, do lugar de quem olha de longe e engole uma explicação – geralmente científica. Prefiro que o mundo escolhido por ela seja o da literatura. Há os que preferem entrar na igreja, por exemplo. É mais fácil caminhar lá dentro. Estão escondidos os tijolos.<br />
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O mundo moderno brigou com Homero. Sentiu-se ameaçado por sua força luzente e rompeu com o ser e com o real. Adotou a ideia tornando-se assim platônico, desistindo de encarnar qualquer realidade concreta ameaçadora como as grandes naus. Entre a verdade e o saber já fora criado um abismo pelos romanos, levados a adaptar seu realismo ao cristianismo. O real, assim, não está mais no ser, imantado como na voz de Homero, entoada capaz de abraçar o mundo. Mas talvez, arrisco pensar, ele esteja no tijolo. <br />
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No lugar da poesia de Homero, aquela que, define Heidegger, "é a poesia que permite ao homem habitar a sua essência", ficou a linguagem-instrumento, incapaz, por isso mesmo, de produzir uma Odisseia. A linguagem, em Homero, não tinha um objetivo: era um fim (e um universo) em si mesma.<br />
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Mas a linguagem é a senhora do homem, diz Heidegger. É nela que se dispõem tijolos e documentos "suculentos" – essa foi outra expressão anotada na aula, mas que não virou título de grupo de whatsapp. Documentos são vivos e suculentos porque, quando palavras são compartilhadas, elas se tornam realidade. Há toda outra humanidade em laivos, estilhaços e clarões de um mundo que já se foi. Lembrei imediatamente dos quadros de Adriana Varejão, das carnes de azulejo:<br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinqgWmoUotgTeU7wMJP1u02-O6c9Qyw9NFifyz15Gwd4T7avDyL1HnNS57T1t6hmYhZ0LFWCTEc7QFD34Q8HDlHliqiQE6m4NPGFBE7c1d-GaieSrXgkbJeHrp4AIiy_UT5-iqhEoQesBH/s1600/foto-15.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinqgWmoUotgTeU7wMJP1u02-O6c9Qyw9NFifyz15Gwd4T7avDyL1HnNS57T1t6hmYhZ0LFWCTEc7QFD34Q8HDlHliqiQE6m4NPGFBE7c1d-GaieSrXgkbJeHrp4AIiy_UT5-iqhEoQesBH/s320/foto-15.JPG" /></a></div><br />
<i>Azulejaria em carne viva, 1999, óleo sobre tela e poliuretano em suporte de alumínio e madeira.<br />
</i><br />
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Quando a linguagem não dá conta do real ela excede o homem e atravessa paredes. Azulejo mole, carne dura, tanto bate até que fura. Então o azulejo escancara a boca e grita: carne viva também é arte. A carne pesa, a pele rasga, a parede se abre: surgem novos espaços, outros dentros, antessalas da superfície, gula do olhar. Nos trabalhos de Varejão, os documentos são suculentos. Nos tijolos dispostos nas prateleiras, o concreto é abstrato.<br />
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Nesse teatro em que o homem reconta a sua história com tijolos, azulejos e carnes está, intuo em atitude metafísica, a poiesis moderna, carregada de permanência e infinita enquanto dura. Quando a palavra não consegue mais dar conta do real, não é porque a realidade cresceu. A própria palavra, imersa na comunicação funcional, é que ficou menor. Grande só a poesia, capaz de levar o homem a habitar poeticamente o mundo. E talvez por isso seja tão difícil adentrá-la. <br />
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É construindo que o homem habita, lembra Heidegger, desenhando a quadratura desse habitar que é, ao mesmo tempo, ser : céu / terra / deuses / mortais. Não somos corpos encapsulados e no homem também vive o extraordinário, o divino, a centelha capaz de fazer brotar tijolos em prateleiras ou carnes em azulejos. No homem ainda vive Homero, imortalizado pela poesia, esperando pelo bom combate, pelo AGON, luta pela excelência que virou luta da alma e hoje parece apenas agonia medicada. É recomendado que estejam fora das prateleiras as tragédias ou qualquer outra coisa que escape ao nosso desejo racional de controle. <br />
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Ainda assim, mesmo a tragédia traz sempre o horror por meio da palavra. Não vemos Édipo furar seus olhos, por exemplo. Catástrofe e catarse só existem através da linguagem. "O poeta lava a violência com a palavra", anotei também em sala, sublinhando duas vezes a frase. Por isso Homero, cego, vê a pura imagem e a poiesis, para os gregos, é sempre menor do que a obra deixada por ela. <br />
<br />
Compreendida a diferença de mundos, tenho profunda inveja de quem lê Homero. Empurrada por Nietzsche para a agonia, (AGO ¬– empurrar, incitar), pretendo fazer dessa inveja o motor para a conquista da leitura de Odisseia. Mesmo que o grupo do whatsapp acabe, seu título ainda vai estar lá. Pensar, como bem disse Heidegger, é agradecer. <br />
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Referências bibliográficas<br />
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Odisseia / Homero ; tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.<br />
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Varejão, Adriana. Adriana Varejão: entre carnes e mares = between flesh and oceans / Adriana Varejão; (org. Isabel Diegues; versão para o inglês Stephen Berg). Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.<br />
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Heidegger, Martin, 1889-1976. Ensaios e conferências I Martin Heidegger; Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Foge], Marcia Sá Cavalcante Schuback.- 8. ed. -Petrópolis: Vozes; BragançaPaulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. (Coleção Pensamento Humano)<br />
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Nietzsche, Friedrich Whilhelm. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. RJ: Sete Letras. <br />
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Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-81441511628729470022014-09-30T12:29:00.001-03:002014-09-30T13:25:09.044-03:00<br />
O nojo do mofo e o mofo do nojo<br />
em <b><i>Assim falou Zaratustra</i></b><br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi-VOLuoGCNOj1EXHA0O0_Loxkn1L3MNQg1_NBsGN4qjW_x9AIcrqhaKvLmwFco2ccyB7vKPhe1G9ksi5ksIgQcmqlgbZu48GGRkdxiWlHzxCwVGOB1LHRk-6j-UqnOZpzwj4ni-P_N7S2c/s1600/foto-18.jpg" imageanchor="1" ><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi-VOLuoGCNOj1EXHA0O0_Loxkn1L3MNQg1_NBsGN4qjW_x9AIcrqhaKvLmwFco2ccyB7vKPhe1G9ksi5ksIgQcmqlgbZu48GGRkdxiWlHzxCwVGOB1LHRk-6j-UqnOZpzwj4ni-P_N7S2c/s320/foto-18.jpg" /></a><br />
<br />
O mofo antigo<br />
colou-se ao novo<br />
causando um grande bolor.<br />
Do verde musgo saiu uma dúvida<br />
imanente<br />
mas logo assim que surgiu no ar<br />
mofou também,<br />
colando-se ao mofo mais velho.<br />
Trata-se portanto<br />
de um bolor<br />
impenetrável.<br />
<br />
<br />
O bolor amarela. Tem pêlos às vezes verdes, às vezes roxos, sendo essas cores eventualmente graduadas por uma pincelada, aqui e ali, de cinza chumbo. Posso quase acreditar que também é possível enxergar um degradê de rosa. Faço uma breve pesquisa no Google e aprendo que, para nos protegermos dos fungos e das vegetações criptogênicas, é preciso confiar na repulsa dos nossos sentidos, que soam, para o organismo, como um alarme de perigo. <br />
<br />
Paro como se estivesse diante de uma placa de rua sem saída. Penso na garganta com nojo, travada no fundo da boca, ameaçando colocar toda a sua repulsa para fora, livrando o estômago de qualquer ameaça. Penso no esôfago tenso, preparado para a ginástica do vômito. Na saliva ácida e beligerante. Todos armados contra as bactérias ameaçadoras, que por sua vez também trabalham na mais perfeita eficiência. <br />
<br />
Essas são ordens fisiológicas. Comandos do organismo, portanto, coordenadas ditas “involuntárias”. Engulo tudo isso junto com o Zaratustra e digiro ainda com dificuldade: são pensamentos do corpo. O nojo, antes de ser um juízo subjetivo e estético, é uma defesa orgânica. Um sinal vermelho de Pare, um alarme que seria sonoro até se pudesse, mas não é preciso. Seu pensamento é tão completo que chega a arrepiar outros pêlos, aqueles que estão no braço paralisado ante o pão bolorento. O nojo é defesa e inteligência sutil. O nojo, tenho de aceitar, também sou eu.<br />
<br />
Ainda é difícil, hoje, e começa a parecer estranho que assim seja, pensar no corpo como alguém. “O alguém é o recheio do corpo”, diz Arnaldo Antunes. Nem só alma, nem só cadeia de músculos exercitados na academia: alguém que pensa junto comigo. Ou separado quando resolvo negá-lo, me diz a psicanálise. <br />
<br />
Recentemente, durante a gravidez, tive a experiência de andar com patas de elefante. Meus pés, de repente, ficaram inchados e pesados como se meu corpo magro pesasse cem quilos. Era doloroso andar e as câimbras traziam com elas a angústia da imobilidade. Remédios, meias elásticas, pernas para cima: nada parecia ajudar. O desconforto era tamanho que costumava acabar em desespero. A grávida iogue e saudável estava sentindo, pela primeira vez, a inescapabilidade do corpo. Eu queria poder fugir dele. Aquelas pernas, que impediam a caminhada, não pareciam me pertencer. Senti todo o tormento de querer sair da casca e não conseguir. Eu era, mais do que nunca, todo aquele corpo inchado. <br />
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Depois de nascida a minha filha, no entanto, as dores continuaram. Passaram-se dois meses, três meses, e nada. “Eu não aguento mais”, disse a uma angiologista de olhos compadecidos. A cirurgia era até recomendada, mas não eram bem as varizes que me imobilizavam. Era o peso da maternidade, era a violência de se descobrir responsável por um outro ser para sempre, mesmo tendo sido esse ser tão desejado; era a inexorabilidade em carne, osso e choro agudo de fome madrugada adentro.<br />
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Aos poucos, o tempo se encarregou de resolver o problema com laços indizíveis de afeto e, quando consegui voltar a escrever um pouco, de novo me reconhecendo como alguém que caminha com as próprias pernas, a dor passou. <br />
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É recordando fatos tão pessoais como esses que entendo melhor o Zaratustra, ele mesmo, aliás, atiçando as minhas lembranças: “Pois no fundo se ama apenas a seu filho e sua obra; e, onde há grande amor a si mesmo, ele é sinal de gravidez: assim enxerguei.” (p. 153).<br />
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Entendo com o andarilho que desgosta de planícies que “afinal, vivencia-se apenas a si mesmo”. Então, para entender o Zaratustra, aceito que o acaso anda de mãos dadas com a vontade e me relembro. Sou eu mesma tudo o que tenho.<br />
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Nietzsche faz 22 alusões ao nojo em Assim falou Zaratustra, indica o índice remissivo. Pontuações constantes e ritmadas, como quem demarca as vezes em que a língua quer deixar de ser língua. A própria frase “Assim falou Zaratustra” cadencia a valsa do descontentamento, da busca por algo que não mofe e, assim, não cause asco. Mas será que esse algo existe?<br />
<br />
Quando queremos que algum alimento não mofe, costumamos colocá-lo na geladeira. A criogenia aliás está aí pra isso, para escrever um parênteses na vida. O ambiente refrigerado suspende o processo natural da tal vegetação criptogênica, seja ela lá o que for. O congelamento, pausa na vida úmida, quente e coerente dos fungos, é o único capaz de evitar o nojo – e também a vida. Quando algo se congela, temos a impressão de que parou no tempo. Mas o tempo, para o andarilho que conversa com cadáveres, é outro problema insolúvel.<br />
<br />
O tempo é pai do mofo e cúmplice do nojo. O bolor, lembre-se, é impenetrável. A dúvida, imanente. Se a vontade não pode “querer para trás”, ou seja, não pode lutar contra o tempo, a criação, seja ela de um mofo ou de uma poesia, é também assustadoramente limitada. Não há como sair do corpo, inchado ou não. Eu sou, junto com o nojo, um acaso e um destino.<br />
<br />
“Eu, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer – é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu.” <br />
<br />
Eis um corpo novo em Nietzsche, entretanto. Um corpo que se constrói sozinho rejeitando Deus e toda culpa e por isso mesmo não tem nojo de si. Um corpo que não mofa justamente porque, no lugar de ficar parado absorvendo organismos / valores / verdades que supostamente o alimentam, se expõe às intempéries do tempo, dormindo na floresta, subindo montanhas e enfrentando as maldades soturnas do mar. Um corpo que faz parte do mundo, que não está separado dele, e compartilha com um fungo o mistério – e as agruras – da criação. Nesse corpo está o sentido da terra. “ ‘Corpo sou eu e alma’ – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?”, pergunta o andarilho. Sim, por que não?<br />
<br />
A criança olha tudo como se fosse a primeira vez. De certa forma ela sabe, no corpo em crescimento, que tudo que é essencial é bem sutil. Ela sabe, de alguma forma, que não há verdades e que o saber não é um valor absoluto. E é importante que assim o seja, para que ela possa errar, trocar, tentar de novo, jogar. Reaprender. É claro que é cansativo esse processo e por isso ela pede que uma historinha seja contada de novo e de novo e de novo, mais uma vez numa espécie de cadência musical. Lidar constantemente com o novo, com que não mofa portanto, é difícil e perturbador. Mas é assim, parece, que o corpo funciona. Mesmo depois de adulto. E talvez por isso Zaratustra diga que acreditaria somente num deus que soubesse dançar.<br />
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“Mas o pensamento mesquinho parece um cogumelo: rasteja, curva-se e pretende não estar em nenhum lugar – até que o corpo inteiro se ache podre e murcho de tantos pequenos cogumelos.” Eis o mofo. Eis também o corpo ressentido de um projeto que não deu certo. Deus está morto e mofado e por isso o desprezo por esse corpo que um dia acreditou tanto nele. É preciso ir além e começar de novo, como num jogo. O corpo que está para além do homem, para além de suas crenças, não mofa e não causa nojo. Parece ser mais alegre, capaz de dançar e se entreter com borboletas e bolhas de sabão. É atravessado pela vontade de criar e acostumado a mudar sempre, sem precisar se alimentar de valores e morais de outrem como um parasita. O super-homem, aqui, troca a criptonita pela naftalina, depois de também ter mudado, é claro, de planeta.<br />
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O super-homem nasce na terra e pertence à ela, é o próprio sentido da terra. É o que não mofa nunca porque está além do corpo; está além dele mesmo, além de seus limites marcadores de mofo.<br />
O super-homem, e agora quem fala é a ex-grávida de pernas inchadas, pode ser a criança que não se deixa mofar, sempre destruindo crenças para criar algo novo, fazendo, tal qual o funâmbulo, do perigo o seu ofício. É levando tombos que se aprende a andar, e para nascer sozinho, sem cortes, é preciso querer muito e fazer esforço. É preciso, de certa forma, renegar as cesáreas e participar do próprio nascimento. <br />
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O que mofa e intoxica é achar que já chegamos onde queremos, aprendo à fórceps, sofrendo junto com Zaratustra. A criação, como a criança, habita corpo e alma e por isso mesmo deixa o sangue dos machucados tingirem os esparadrapos, para dizer o mínimo. Mas é melhor ralar os joelhos do que parar de andar, tento me convencer, de mãos dadas com a angústia. É melhor se tornar uma passagem do que um ponto final. É super-homem também aquele que esquece de si mesmo. É a obra em si a causa do artista, e não vice-versa. <br />
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A inocência está na vontade de gerar, entendo, e quem quer criar para além de si tem a vontade mais pura, diz Zaratustra. Aquela onde certezas, gostos e sentimentos não importam porque simplesmente não existem. O movimento da criação é o próprio movimento da natureza, da vegetação criptogênica portanto, valsa sem dançarinos. Nascer é querer e, inebriado, esquecer-se, para depois olhar tudo com olhos de criança: como se fosse sempre a primeira vez. Nascer e criar então são verbos parecidos e, ao que tudo indica, resistentes ao nojo.<br />
O difícil, acrescentam os pés inchados, é não deixar que tudo isso mofe ao entrar em contato com o ar.<br />
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“Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original” (Nietzsche)<br />
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Nietzsche, Friedrich. <i>Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém</i>. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2011. <br />
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P.S - Desculpem a falta de notas de rodapé. Ainda não sei como fazer isso aqui no blog.<br />
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Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-57018370174318393882014-09-17T13:29:00.002-03:002014-09-17T13:29:12.136-03:00O homem é sempre o encontro com o seu mundo.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-81518995220686538922014-09-10T13:52:00.000-03:002014-09-10T13:52:23.878-03:00<br />
Cascos<br />
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Os cascos foram se descolando em blocos.<br />
Primeiro foi o do pulmão.<br />
A crosta grossa tinha cheiro de mofo, cigarro e bombinha de asma.<br />
Depois peguei um craquelado de costela. Não estava quebrada, mas doía. <br />
Quando chegou perto do coração a casca toda amoleceu, úmida quente brilhante pegajosa.<br />
Não senti nojo não, achei até bonito. De lá dava para ver o pulmão agora descascado, parecia transparente meio azul.<br />
Tinha uma luz nisso tudo, um traço, um folguedo de raio solar, algo assim que ilumina e dá calor.<br />
Os cascos, pesados, iam assim se descolando. Quando um soltava do outro eu escutava o estalo.<br />
Só depois de muito tempo é que me senti casco inteira, feita só deles, mais nada. <br />
Aé pensei melhor se queria quebrar um a um.<br />
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Essa poesia escrevi em 2004, pouco antes de saber que a minha mãe estava com câncer no pulmão. Hoje ela está curada e a minha intuição poética também.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-76742220090298629842014-08-15T11:30:00.001-03:002014-08-15T11:30:25.106-03:00fio da madrugada / navalha / acordadaCarla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-82903247914027228422014-07-31T12:15:00.002-03:002014-07-31T12:17:33.248-03:00A poesia, na verdade, é bruta. Está nos fatos e machuca. Está na farpa e na harpa, no vinho e no leite ninho, sozinho. Na lata mesmo tem poesia em pó. Dissolvida em água, escorrega para o estômago e fermenta em prosa. Na bancada toda da cozinha tem poesia. Ali mesmo, perto da carne crua e das facas. No sal e na pimenta. Em tudo, tudo mesmo. A poesia é mais onipresente do que Deus. Aliás, se Deus existe, é porque foi escrito por ela. <br />
O problema, já lembrava Nietzsche, é que nos tornamos péssimos poetas. Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-86797614791855065772014-07-23T13:35:00.000-03:002014-07-23T14:25:25.615-03:00<br />
Fim de Copa <br />
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A Copa do Mundo, para o espanto de todos, acabou. Não fui às ruas, é verdade, mas ouvi poucas vuvuzelas e posso quase jurar ter visto mais gringos do que brasileiros com a camisa do Brasil. Pode ter sido só impressão mas, depois da final melancólica contra a Alemanha, impressão parece ser tudo o que temos. <br />
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Vivemos, nesse jogo trágico do 7 X 1, o duelo entre a técnica e a emoção, e não escrevo isso com um chope ao lado numa mesa de bar. Mais uma vez, como tantas, o brasileiro apostou na raça, na gana, na força do peito e no sentimento na hora de decidir um jogo que, por incrível que pareça, depende de muita técnica. De novo o brasileiro apostou todas as fichas no emocional e, com preguiça de fazer o dever de casa, costurou de véspera o pensamento mágico de que a vitória viria. Afinal, nós somos brasileiros e merecemos. Tudo sempre se resolve. Deus é verde e amarelo e vai dar tudo certo. <br />
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Essa não é uma crônica esportiva, é claro. No entanto, não consegui parar de pensar na depressiva final de Copa que tivemos quando comecei a ler <i>Do Belo Musical: Um Contributo para a Revisão da Estética da Arte dos Sons</i>, de Eduard Hanslick. De uma clareza lógica desconcertante, as chamadas do crítico musical austríaco, feitas ainda no século XIX, reverberam potentes agora, em 2014, num ano que talvez, apenas talvez, comece agora. A Copa do Mundo terminou, e terminou com algum trauma. Foi-se com ela não só a taça, mas também a crença na força onipresente da emoção. Sentimento não ganha jogo, aprendemos na marra. Nem define a música. Hanslick, se tivesse conhecido Felipão, talvez lhe tivesse dado bons conselhos. Emoção não deve ser a língua da música, e o futebol deveria seguir o exemplo. Fim da partida. <br />
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Em nossos argumentos não recorremos à analogia à toa, lembra o filósofo Merleau-Ponty: é o mesmo mundo que contém nossos corpos e nossos espíritos. Já o que a música e o futebol têm em comum é o mesmo que um determinado acorde compartilha com o sentimento de amor, raiva ou compaixão: nada. A música, ao contrário do que muita gente pensa até hoje, e me incluía nesse time, não transmite sentimento algum. Somos nós, eureca, que acrescentamos ao seu movimento (aí sim, algo de aparentado ao sentir) uma determinada emoção, dependendo do humor do dia e da civilização de cada ouvido (também no pensar e sentir há tradição). Parece óbvio, mas o óbvio, que o diga a seleção brasileira, às vezes é muito difícil de enxergar.<br />
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Música é arte autônoma, e suscitar sentimentos pode ser o seu conteúdo, mas nunca o seu fim. A <i>fantasia</i> é o órgão genuíno do belo. A atuação exclusiva do entendimento por meio do belo, ataca Hanslick, chega a ser patológica.<br />
A música <i>age</i>. Ela troveja, sussurra e pode ser dramática como no tema do segundo final de <i>Os Huguenotes</i>, cita o autor, mas somos nós que colocamos sentimentos nessas ações. O símbolo é sempre diferente do conteúdo. "A peça sonora flui da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte" , diz o crítico.<br />
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"<i>Toda a verdadeira obra de arte se estabelecerá numa qualquer relação com o nosso sentir, mas nenhuma numa relação exclusiva. Por conseguinte, nada de decisivo se afirma acerca do princípio estético da música quando esta é caracterizada mediante o seu efeito no sentimento</i>." <br />
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Eis o pensamento moderno esbarrando na música. Aprendemos com Descartes que sentir é pensar, e pensar é algo que fazemos de mãos dadas com o mundo. A realidade é mesmo histórica e a música não se dissolve com qualquer conteúdo. Ela <i>é</i> o conteúdo. O belo musical, arte da música, é autônomo e especificamente musical, ensina Hanslick. Ele, o belo musical, não fala o idioma do mundo, tampouco o do futebol. Como toda arte, ele parte do sensível e nele se tece. As fronteiras do seu conteúdo espiritual demarcam, exclusivamente, o que é musical e que está fora, portanto, do conteúdo real e histórico onde transitam conceitos, representações e... sentimentos.<br />
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O que a música pode representar são as ideias, conceitos vivificados, conteúdos da encarnação artística. Para tanto ela encarna o movimento dos estados de ânimo, o pulsar dos sentimentos e do humor. Como toda atividade artística, a música individualiza ideias gerais, mas é espírito que se configura a partir de dentro. <br />
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"<i>A fantasia não é, naturalmente, um âmbito fechado: assim como extraiu a sua centelha vital das percepções sensíveis, assim envia, por seu turno, rapidamente os seus raios à atividade do entendimento e do sentimento. No entanto, estes são para a genuína concepção do belo apenas campos limítrofes.</i>" <br />
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"Descrever com sons um sentimento é ridículo", reafirma Hanslick. <br />
Tentar ganhar um jogo só com a garra e a coragem também. <br />
Desvalorizamos com isso o sentimento? É evidente que não. Apenas entendemos que o efeito da música sobre o sentimento nunca poderia, como aconteceu até Hanslick, fundamentar um princípio estético.<br />
"<i>De fato, uma ópera em que a música se emprega sempre e apenas como meio da expressão dramática é um absurdo musical</i>.", sentencia o autor. A música, que até então era usada para "imitar" determinados sentimentos, sendo considerada legítima somente quando bem-sucedida nesse intento, já era livre e despreocupada com o timbre da compaixão, do amor ou do ressentimento, simplesmente porque eles não existem.<br />
Da arquibancada, xingando ou ovacionando, a torcida não muda o placar do jogo. Fim de Copa. <br />
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P.S Para quem se interessar pelo livro, que só conheci por causa da minha pós-graduação: ele pode ser lido em pdf no link abaixo!<br />
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<a href="http://www.lusosofia.net/textos/hanslick_eduard_do_belo_musical.pdf">Do Belo Musical</a><br />
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Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-26378851953798996282014-05-08T11:48:00.002-03:002014-05-08T11:56:28.256-03:00<br />
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Carta aberta ao professor Edgar Lyra<br />
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"O mundo não gira ao redor do umbigo de vocês", disse o coordenador segundos antes das minhas pernas, compulsivamente, se retirarem da sala. Tenho pernas muito críticas e hoje, aos 39 anos, só vou onde elas mandam. Há pouco mais de um ano elas me mandaram de volta para a PUC, onde me formei em Jornalismo no longínquo ano de 1996. Voltei, como boa filha à casa, para cursar uma pós-graduação em arte e filosofia. No meio do caminho houve um mestrado em comunicação, mas isso foi antes de descobrir que só a filosofia salva.<br />
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Fiz muito esforço para ir àquela aula, especificamente. Esperei a babá que se atrasou, peguei mais de uma hora de trânsito, estacionei longe da faculdade e andei muito para quem havia torcido feio o pé há poucos dias ¬– meus pés também são muito rebeldes às vezes.<br />
Eu jamais havia saído de sala assim, nesse ímpeto de revolta. Um dia depois, refeita da raiva que acabou em insônia, parei calmamente para pensar no meu umbigo. Vejamos: meu umbigo já alimentou outro umbigo que completa dois anos no sábado. Já estudou o suficiente para saber que nunca se estuda o suficiente e publicou alguns livros. Considerando ser um umbigo razoavelmente experiente, portanto, pensei que não merecia uma reprimenda dessas, provavelmente endereçada semestralmente aos alunos de graduação em filosofia coordenados pelo Mestre Edgar, dublê, naquele dia, de coordenador da Pós.<br />
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Mas pensemos: se levarmos adiante os estudos de Merleau-Ponty, por exemplo, sobre a fenomenologia da percepção, veremos que não há a menor, nem mesmo a ínfima possibilidade, de fugirmos do nosso umbigo na hora de olhar para o mundo. Ao ler Merleau-Ponty, aliás, senti ganhar passos mais largos, embora ainda desengonçados como os de uma criança. A realidade finalmente aparecia como algo a ser visto de fato, onde as coisas dialogam entre si. De certa forma, foi um alívio encontrar em Ponty uma realidade sensível que, ao contrário do que dizem os mui modernos, existe. Enfim um retorno às coisas mesmas, a uma calçada que está dada, um chão pisado por todos sem tantos enganos – ou tropeços – dos sentidos. A origem da verdade, pasmem, pode <i>sim</i> estar na percepção.<br />
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Então, caro Edgar, preciso discordar: o mundo gira, sim, ao redor do meu umbigo. E é ele, o meu umbigo, que me garante que não há nada de errado em reclamar de um professor incompetente. Tenho ótimas lembranças da minha época de faculdade, mas também lembro de ter tido péssimos professores. Péssimos, ruinzinhos mesmo, daqueles que causam vergonha alheia. Nos intervalos das aulas, sentados de pernas cruzadas e encostados nos pilotis, pensávamos às vezes em reclamar. Mas tínhamos mais o que fazer. Sim, chopadas, como você deve ter pensado, mas também tínhamos estágio, processos de seleção e a luta pela vida profissional lá fora. Éramos umbigos muito ocupados.<br />
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Eu me arrependo. Se tivéssemos reclamado na época, talvez os umbigos que chegaram depois de nós tivessem se beneficiado. Uma pena.<br />
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Sim, o mundo gira ao redor dos nossos umbigos e, felizmente, da sua capacidade crítica e reflexiva. É isso o que nos torna alunos, esses seres que aprendem, quando a aula é boa, que o essencial do homem não é o humano, mas sua relação com o mundo. É na incapacidade de dividir o senciente do sentido que acontece a visão, e isso mesmo quando olhamos uma simples sala de aula polvilhada de preconceitos.<br />
Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-19343018613118750772014-04-03T11:16:00.000-03:002014-04-03T11:16:11.583-03:00E de repente<br />
(Mentira, eu senti tudo isso chegando)<br />
Quero te dar as nuvens<br />
Melhor, quero antes pintá-las de rosa<br />
Quero virar algodão doce<br />
rosa<br />
Quero comer bem mastigado suas bochechas<br />
rosas<br />
quero me pendurar em você<br />
como um móbile<br />
Estou perdida, penso<br />
(sinto também, sempre)<br />
Agora já sou sua<br />
quando era só pra você<br />
ser minha.<br />
Pobre de mim, filha,<br />
pobre de mim.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-84890208837303209582014-01-29T12:06:00.000-02:002014-01-29T12:12:23.345-02:00A passarela trágica de Nietzsche<br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://acasadevidro.files.wordpress.com/2011/09/tragedia-grega.gif" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://acasadevidro.files.wordpress.com/2011/09/tragedia-grega.gif" /></a></div><br />
A vida é uma tragédia, costumava me dizer um antigo chefe. Ele já beirava os cinquenta anos e eu era apenas uma estagiária de vinte, o que fazia com que eu considerasse aquela frase um tanto exagerada ¬– dramática, para usar um termos mais adequado aqui.<br />
Outros vinte anos depois, checo na internet a queda, em pleno horário de rush da Linha Amarela, de uma passarela inteira. Até agora são cinco mortos, quatro feridos e fotos assustadoras propiciadas pela imprudência de um motorista de caminhão que passou por baixo da passarela, em alta velocidade é claro, com a caçamba levantada. O impacto foi suficiente para derrubar toda a estrutura em segundos, bloqueando os dois sentidos da via expressa. O prefeito recomenda que as pessoas evitem sair de casa se precisarem usar essa via porque, nas palavras do próprio, estamos diante de uma tragédia.<br />
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De repente, numa manhã que começara normal, com café e um trabalho sobre tragédia grega a escrever pela frente, o peso de vigas de concreto esmagando carros traz à tona a inexorabilidade. Por mais que diariamente tentemos nos desvencilhar da incômoda ideia da fatalidade com os mais variados recursos – espirituais, religiosos, psiquiátricos –, a vida é, sim, uma tragédia. <br />
Foi o Cristianismo, grita Nietzsche, que nos distraiu desse fato, prometendo vida eterna e assim tirando o foco da vida terrena. Passamos a olhar mais para o futuro e para o passado do que para o presente. Olhamos mais para o corpo de Cristo do que para os nossos próprios corpos, desde então sempre culpados e envergonhados.<br />
Suspeito que o filósofo tinha razão. O meu ex-chefe também. <br />
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Parece que os gregos sabiam bem o que faziam quando, num momento de exuberância do seu povo, da magnificência de Atenas, centro do mundo no século V, encenavam as mais doídas tragédias. A dor ainda não havia sido apartada da vida. Sofrer com os revezes do destino fazia parte de viver, empreitada que, por isso, não deixava de ser bela. O bem e o mal ainda não liam a Bíblia. <br />
Releio alguns trechos de <i>O Nascimento da Tragédia</i>. Como paralisada pelo trânsito, engarrafada em suas linhas, entendo um pouco melhor a cultura apolínea:<br />
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"Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhe dar as costas, desalentado e decepcionado. Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau. E assim é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal, 'pairando em doce sensualidade', da própria existência deles." <br />
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Continuo a busca na via expressa nietzschiana e enxergo o substrato dessa cultura. De certa forma, podemos dizer que é o susto. Quando passarelas ainda não despencavam simplesmente porque ainda não existiam, reza a lenda que o Rei Midas perguntou ao daimon Silesio, espírito intermediário entre mortais e deuses e companheiro de Dionisio, qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Em vão tentou o demônio (daimon) não responder: "Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria pra ti mais salutar não ouvir?". Diante da insistência do Rei, no entanto, despejou o golpe: o melhor mesmo para o homem era não ter nascido, era nada ser. Uma vez vivo, o melhor para ele era morrer. <br />
Como lidar com um mito desses? Com beleza e medida apolínea aproximadas ao arrebatamento dionisíaco, identifica Nietzsche, encontrando na tragédia grega o exemplo dessa mistura. Eram os gregos construindo passarelas entre homens e deuses.<br />
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"O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos. Aquela inaudita desconfiança ante os poderes titânicos da natureza, aquela Moira (destino) a reinar impiedosa sobre todos os conhecimentos, aquele abutre a roer o grande amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do sagaz Édipo, aquela maldição sobre a estirpe dos Átridas, que obriga Orestes ao matricídio, em suma, toda aquela filosofia do deus silvano, juntamente com seus míticos exemplos, à qual sucumbiram os sombrios etruscos –, foi, através daquele artístico mundo intermédio dos Olímpicos, constantemente sobrepujado de novo pelos gregos ou, pelo menos, encoberto e subtraído ao olhar. Para poderem viver, tiveram os gregos, levados pela mais profunda necessidade, de criar tais deuses, cujo advento devemos assim de fato nos representar, de modo que, da primitiva teogonia titânica dos terrores, se desenvolvesse, em morosas transições, a teogonia olímpica do júbilo, por meio do impulso apolíneo da beleza – como rosas a desabrochar da moita espinhosa." <br />
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É dessa mitologia religiosa e cívica que surge a tragédia, sempre ligada originariamente aos deuses. Até a Idade Média, religião e arte andavam juntas. O divino oferece ao homem não uma promessa de futuro e salvação, mas uma revelação do seu ser.<br />
Para Nietzsche, as fontes primeiras da tragédia são puramente religiosas e não políticas. Aristóteles discordaria lembrando que a tragédia tinha sim um sentido político e só existiu enquanto perdurou a democracia. Christian Meyer reforçaria ainda a tese afirmando que a tragédia era um ato cívico. No entanto, por mais que pareça difícil desfazer o vínculo entre tragédia grega e política, nossa passarela aqui, com alguma licença poética, é carioca e nietzschiana. Além disso, a religião grega não era dogmática e sim ética, o que faz da origem religiosa da tragédia, de certa forma, um registro também político.<br />
Para Nietzsche, o coro trágico é a própria expressão da voz de Dionisio, associado, por sua vez, à dimensão originária e primordial. A tragédia grega em si teria uma natureza inconsciente ligada aos mais obscuros instintos vitais. Arte e vida se confundem por terem um fundo originário comum, sintonizadas com a tensão entre Apolo e Dionisio; na tragédia, Apolo dá expressão verbal à Dionisio. <br />
Na trama trágica, a música do coro é uma das manifestações dessa "parceria" que ocorre especialmente na voz da multidão "embriagada" e identificada com o poeta lírico que, enquanto artista dionisíaco, é um só com o Uno primordial. Esse é, para Nietzsche, o papel do coro na tragédia grega: a personificação do deus Dionisio. É assim que, junto com Apolo, ele cumpre o papel de expressar a tragicidade imposta pela vida. <br />
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"Atento ao dia final, homem nenhum afirme: eu sou feliz!, até transpor – sem nunca ter sofrido – o umbral da morte.", diz o coro ao final da tragédia <i>Édipo-Rei</i>, de Sófocles.<br />
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Só o divino tem o controle do fim da ação humana, sabiam os gregos. Também sabiam ser a ação humana cega e impenetrável nas suas últimas consequências. O indivíduo é, essencialmente, um ser trágico.<br />
Mesmo as passarelas de concreto desmoronam.<br />
Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-11988275780422540912014-01-09T12:35:00.003-02:002014-01-09T12:35:54.508-02:00Disposição privilegiada da angústia: ver o Mundo com letra maiúscula.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-25183243366373419262013-12-03T16:54:00.000-02:002013-12-03T17:00:29.751-02:00Calei-me quando te vi, e assim apreendi o presente.<br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhac2XXVkj3N8a06VVcDNDwDLZV1x914ZC7cgeEO8czHypsctVFhE0yH3iie2GhO5tLEepvpyY9fJMduzVoIBYjt22zrGp-7OkrcsZI67J_S4DKDcgqH0U4cfGbGndXPuycLCWBKez2ik-e/s1600/IMG_0034.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhac2XXVkj3N8a06VVcDNDwDLZV1x914ZC7cgeEO8czHypsctVFhE0yH3iie2GhO5tLEepvpyY9fJMduzVoIBYjt22zrGp-7OkrcsZI67J_S4DKDcgqH0U4cfGbGndXPuycLCWBKez2ik-e/s200/IMG_0034.JPG" /></a></div>Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-21683616387859377662013-10-03T10:40:00.001-03:002013-10-03T10:40:31.051-03:00Tem céu no fundo do mar.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-76228630307592100002013-09-30T15:47:00.002-03:002013-09-30T15:47:56.049-03:00A Apple já vale mais do que a Coca-cola. Finalmente comer maçã é mais legal do que tomar refrigerante!Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-86378055110340276652013-09-24T10:59:00.000-03:002013-09-25T12:21:33.182-03:00<br />
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<a href="https://www.dropbox.com/s/cy6gt0j3w9al18j/apresentação%20Fazendo%20Gênero%20%281%29.docx">Apresentação Fazendo gênero</a><br />
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Está aí, meninos. Fui a Floripa empunhar o microfone no megavento feminista <a href="http://www.fazendogenero.ufsc.br">Fazendo Gênero 10</a>. Gaguejei, fiquei roxa e suei frio como quase sempre. Mas tá falado.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-1616190233684113322013-09-13T13:24:00.001-03:002013-09-13T16:42:53.160-03:00<br />
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Mulher descascada<br />
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Sou uma antes de Hilda Hilst, e outra depois. Antes era uma adolescente um tanto entediada, sentindo-se exilada do excitante mundo lá fora, lugar que parecia sempre deslumbroso (sic,sic, sic!) destino. E eu enquanto isso perdendo a vida, deixando escorrer pelos dedos cada segundo de experiências antes de topar, numa trivial revista feminina, com a escritora da Casa do Sol. Foi numa entrevista que nos conhecemos. Eu e ela, a velha, a bruxa, a mulher que traçou boa parte do meu caminho. Estava lá, na conversa publicada pela Marie Claire, o espanto em forma de cérebro. Naqueles diálogos quem falava era a inteligência brilhante, a arte pura e translúcida, sem opacidades. Era Hilda, estrela Aldebarã. Como Drummond, me apaixonei por ela.<br />
Mais de vinte anos se passaram de lá para cá, tempo suficiente para que eu lesse a sua obra completa, prosa e poesia, e fica me faltando apenas a dramaturgia.<i> Bufólicas, Rútilos, O caderno rosa de Lori Lamby, Com os meus olhos de cão, Cartas de um Sedutor, Tu não te moves de ti, Baladas; Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, A Obscena Senhora D</i>: estão todos na estante, um pouco amarelados, marcados por dentro, manchados de lágrimas até. Amados. Tive vontade de abraçar cada um deles depois da leitura, e não o devo ter feito por medo de amassá-los. Aqueles livros me constituem na paixão e na alma, e foi seguindo os seus rastros, as suas dobras, os seus aguados, que comecei a escrever por mim mesma. Rascunhei as minhas primeiras leis, e também as minhas primeiras linhas de verdade. Eu queria ser a Hilda Hilst quando crescesse.<br />
Continuo querendo, é claro, e vou com ela para Floripa participar do <a href="http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/">Fazendo Gênero 10</a>, megaevento que debate os desafios atuais do feminismo e dos estudos de gênero. Nas minhas mãos estará meu livro, a novela rebolante filosófica <i>À sua espera,</i> mas na minha alma estará ela, a mulher bruxa. Boa sorte para todos nós. <br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnptve6GKOcIhY__Vfx71Vs6sYCHvADlE85n3rrZGS6InVbZgk4svV1X2lxr8ib97QLVJ0duXQh5_qgY6zwP3R4TftVQ5RAQJFe9xp0X5AqKgXFlVp9JJ4ybS1BI068hm2bUbhMimT3Y8O/s1600/foto-9.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnptve6GKOcIhY__Vfx71Vs6sYCHvADlE85n3rrZGS6InVbZgk4svV1X2lxr8ib97QLVJ0duXQh5_qgY6zwP3R4TftVQ5RAQJFe9xp0X5AqKgXFlVp9JJ4ybS1BI068hm2bUbhMimT3Y8O/s320/foto-9.JPG" /></a></div>Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9063952085702813567.post-29187548423145703262013-08-28T11:06:00.000-03:002013-08-28T11:11:33.208-03:00<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJDF-busSais6NyNT88vt_FcRqYrq8aRDD0yOR1OsC40U8oF35ADdCY_6aj82HL4eUFQXGU9nVXs7ZNHM2VxN38CB5pHy9gmNgavQzQnmlGKjd-HDmR7nyisPhbSMC5FaCa8miUnlTIN5J/s1600/IMG_2143.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJDF-busSais6NyNT88vt_FcRqYrq8aRDD0yOR1OsC40U8oF35ADdCY_6aj82HL4eUFQXGU9nVXs7ZNHM2VxN38CB5pHy9gmNgavQzQnmlGKjd-HDmR7nyisPhbSMC5FaCa8miUnlTIN5J/s320/IMG_2143.jpg" /></a></div><br />
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Peço emprestada a sua mão<br />
para escrever em grãos:<br />
Anotar na areia seu sorriso<br />
sem medo da onda borracha<br />
Derrubar baldes de beijos<br />
ao pé da gaivota<br />
sem temer o vento - e o vôo.<br />
Fazer a minha própria mão direita<br />
escrever a vida em pegadas fofas efêmeras<br />
sem medo, sem medo.<br />
Peço toda você sempre na praia, no sol nascente e poente.<br />
Peço apenas isso: um empréstimo de espumas felizes<br />
à beira de mim.Carla Mühlhaushttp://www.blogger.com/profile/12474998309196367732noreply@blogger.com1