quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O primeiro Kindle a gente às vezes esquece





Ainda não contei pra vocês, mas no Natal ganhei um Kindle. Felicidade total. Agora leio livros gordos como o Maximum City, de Suketu Mehta, sentindo nas mãos apenas o peso de uma pluma. Não estou considerando-o o melhor livro da minha vida, como diria Cora Rónai, mas lê-lo no meu kindle faz valer a experiência. Além disso, como vocês já sabem, tenho certa obsessão por livros sobre a Índia. Ou melhor, tenho obsessão pela Índia, mesmo sabendo que, muito provavelmente, nessa encarnação ao menos, eu não terei coragem de ir até lá. E como não acredito em reencarnações, é de se presumir que eu fique mesmo apenas na vontade.

É claro que também fui ver a exposição India, no CCBB, que, aliás, termina nesse final de semana. Talvez seja a minha paixão pela ioga, que sigo fielmente há seis anos, mas o fato é que toda a coleção me emocionou: As fotos, os tapetes de parede decorativos, os artigos religiosos e até a sala de cinema de Bollywood, onde fiquei sentada um bom tempo vendo curtas indianos – todos, é claro, de qualidade discutível para os nossos padrões, que são igualmente muito esquisitos.

Desci do segundo andar direto para a livraria e dei de cara com o livro Ioga para quem não está nem aí, de Geoff Dyer, que estava querendo ler há tempos. A livraria, decorada com temas indianos, recendia a incenso, o que deve ter contribuído para que eu, num impulso, comprasse o livro sem respirar duas vezes. Subi as escadas para o café agarrada a ele, capa perfumada e conteúdo deliciosamente incorreto, o que sempre, a meu ver, também combina com os temas indianos.

Até hoje o livro continua cheiroso, e esse é o único consolo para o fato de que a idiota aqui poderia tê-lo comprado para o kindle, bem mais barato e na sua língua original. A tradução da edição da Cia das Letras, de Sérgio Flasksman, é boa como poucas, mas eu poderia estar bebendo na fonte. Ela só não teria cheiro de incenso.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Sobre o que não se escreve

Andaram me cobrando um novo post. O que é curioso porque, além de eu não ter leitores suficientes que justifiquem tal demanda, também ando pensando muito sobre o indizível, sobre o que simplesmente não encontra o caminho do papel. Sobre o que fica no ar e não sabe o que é tinta, nem tela, nem bytes. Muito menos esse umbigo falante chamado blog.

Fato é que desde que olhei para o espelho e reconheci nele, finalmente, uma grávida, minhas palavras mudaram sem que eu percebesse. Estão mais ariscas e exigentes. No fundo, aprenderam que não são sereias cujo encanto, por contrato da imaginação, é garantido. Há muito silêncio numa gravidez, e ele não vem do vazio ou do suicídio criativo. Vem lá de dentro onde muito se trabalha, mas não se decifra. Onde milhares de conexões neurais, musculares e orgânicas tocam juntas numa orquestra universal, onde só o que muda, nas apresentações mundo afora, são os endereços e os maestros, cada qual reservado a uma determinada crença de origem. Há os que acreditam em Deus e deixam tudo rolar como ele bem quiser, o que me parece sempre muito confortável, e há os que, como euzinha, queimam a mufa mais do que deveriam pensando em tudo, o tempo todo, até a cabecinha cansar e avisar que hoje tem de novo insônia, criançada.

Me pego lendo artigos sobre a opção pela tela em branco. Sérgio Augusto, no Estado de São Paulo, lembra que Sócrates não escreveu uma linha, e no entanto inventou a filosofia. Na literatura, grandes autores como Rimbaud também optaram pelo silêncio em algum momento da vida, alguns de maneira definitiva como o próprio poeta que, aos 22 anos, trocou a poesia pela aventura. Monsieur Teste, alter ego de Paul Valéry, lembra ainda Sérgio Augusto, não só desistiu de escrever como atirou sua biblioteca pela janela. Já Adorno achava impossível escrever qualquer coisa que fosse depois do Holocausto. E Enrique Vila-Matas cunhou o termo “literatura do não” para escrever sobre romancistas e poetas que nada escreveram, em Bartleby e Companhia. É evidente, meus caros, que tudo isso também é escrever.

No entanto, continua em outro artigo Antonio Tabuchi, mais um escritor que se deu ao trabalho de pensar sobre o que não se deve, “tudo isso naturalmente conduz a uma dimensão ‘paralela’, onde o não escrever é uma forma de vida, o silêncio pode não ser uma renúncia, mas uma conquista ou afirmação, onde o não existente impõe sua existência, carregada de um significado misterioso e insondável, como uma pausa, o silêncio de uma partitura musical, que pode resultar mais emocionante que uma nota.”

É claro e de uma obviedade galopante que não sou Rimbaud nem Vila-Matas, mas as minhas notas, ultimamente, também ecoam mais do lado de dentro, lá onde a Alice já gosta de chutar. Enquanto isso, praticamente toda ação criativa se resume a aguardar notícias da agente sobre o livro que escrevi durante os quase dois anos em que tentei engravidar. À sua espera é uma novela verborrágica e angustiada de 104 páginas. Mas agora o falatório acabou, e termino meus livros de encomenda a sopapos. Por baixo deles reina um silêncio do bom, uma paz sem letras, um encanto de sereias indizíveis. Converso com elas por telepatia, talvez, emudecida de espanto e gratidão. Não escrever, às vezes, é a melhor maneira de se expressar.