segunda-feira, 19 de setembro de 2016



Sumidouro é quando a terra se encontra com a água de verdade, num daqueles encontros de namoro urgente que ninguém esquece. É quando a água do rio é sugada pela amante, puxando-a para o solo, levando-a pra dentro, pra dentro, pra dentro. Some tudo e vira ouro, outro, sumidouro, somado. Aquele ator e palhaço lindo foi embora assim, puxado pelas canelas num emaranhado de forças da terra que só os índios conhecem.

Rio é sempre muito perigoso. Tem correnteza, tem tromba d'água, tem pedra que desliza. Quando eu era criança andava muito pelo riacho, negociando cada tropeço com o limo, cada pedra com os joelhos sempre ralados. Pulava de uma pedra pra outra de chinelo e só não batia a cabeça lá embaixo perto da correnteza porque os pajés já estavam atentos.

Sumidouro engole tudo: gente, suspiro, sonho, ideias. É pra lá que vão os projetos mais mirabolantes e acalentados da sua vida depois que você tem um filho, por exemplo. Você pensa num gatilho para um texto enquanto arruma a mochila e, antes de saber que teve uma ideia, sente que ela caiu no sumidouro. Você acha que conseguiu entender os dois últimos capítulos do livro de filosofia, mas isso foi dois minutos antes de correr atrás de mais um joelho esfolado e deixar tudo escorrer pelo sumidouro de novo.

Vai tudo pra lá: tempo, notas mentais, notas de pé de página, fichamentos, emails, poesias, sinopses, contos, lendas de rio. Porque o sumidouro, cabeça invertida para o mundo, é sedento. Quer saber tudo o que acontece aqui em cima e quer leitura boa, quer palhaço bom, quer coração translúcido generoso, quer braço de gente que não leva ninguém junto na hora ruim, que abre o peito, olha triste e longo enquanto espera o inevitável com coragem. Espera ser sugado para a terra, para o ser-no-mundo, para a argila, para virar limo verde cantante, para ver pequenas sereias, quem sabe, girinos brilhantes, para viver um tempo de argamassas revolvidas com o espaço.

E então nesse redemoinho estranho da vida você vê sua filha desenhando numa folha de árvore feita com papel verde. Cada folha leva um sonho depois colado na árvore lá do evento da Vila Sésamo, aquele grupo que provavelmente vai para o sumidouro da filha, mas que eu queria muito ver nadando na sua superfície. Perguntei qual era o sonho dela, e quando ela acabou de falar eu mesma já era um riacho chorão. Era fazer o pai feliz. Sim, o pai, que não é palhaço nem ator, mas que escreve para atores e quem sabe outros palhaços, e que por um bom tempo esqueceu o nariz vermelho na gaveta. Na gaveta, não no sumidouro, porque acabo de entender que só as melhores coisas vão para o sumidouro, e é mentira que elas ficam perdidas. Os sumidouros são as usinas de significado da vida, está tudo lá embaixo. Eles centrifugam sentidos no centro da terra e devolvem tudo à superfície, desejos macerados, diluídos, decantados. O que agrada à terra volta para a margem. Narizes de palhaço, por exemplo.

quinta-feira, 14 de julho de 2016


Naquele dia ele ia conseguir. Não passava daquele dia. Vinha se preparando há meses. Respirou fundo, sacou o celular do bolso, abriu a agenda telefônica. Bastava encostar no número ligeiramente, tão simples, tão rápido. Você consegue, pensou, nem precisa discar nada, é rápido como tirar um band-aid, você consegue.
Não conseguiu. Bateu taquicardia, suor frio, tremedeira. E se engasgasse? E se perdesse a voz ou, pior, ficasse com uma voz esganiçada de cantor de chuveiro? Ah, mas não, não podia desistir. Havia prometido a si mesmo que, se não ligasse naquele dia, jogaria o celular na privada. Escreveu essa promessa, até. Na página de notas do celular.
Olhou para o espelho, disse Há! e ligou.
Fala Pedrão!
...
Alô?
...
Você tá aí, cara?
...
Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
...
Desliga aí, vou te ligar para ver se melhora a ligação.
Mauro, melhor amigo de Pedrão, amigo de infância, do peito mesmo, nunca mais conseguiu falar com ele. Recebeu uma mensagem no whatsapp, no entanto, onde Pedrão explicava estar pegado no trabalho, que no momento em que ligou viu que teria que desligar, que pô, saudade irmão, a vida tá corrida, como vai a Belinha? Vamos combinar um churrasco, vamos marcar aí.
Pedrão não recebeu resposta. Hoje vive corroído com a ideia de ter magoado o amigo de fé, irmão camarada, seu brother de sempre. Prometeu a si mesmo que escreveria uma mensagem para ele no inbox.
Depois dessa, Pedrão não falou com mais ninguém ao telefone. Acha íntimo demais. Falar ao telefone é uma invasão de intimidade que ninguém merece. Muito menos os amigos.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Tim-tim!


Acho importante ensinar boas maneiras. Comer de boca fechada, manejar bem os talheres, juntá-los depois no prato antes de limpar a boca e tirar delicadamente o guardanapo do colo. O problema é que ensinar isso a uma criança de três anos é difícil, porque pode ser difícil ensinar qualquer coisa a uma criança por mais de dez minutos. Ou segundos. Então a gente se diverte. Faz piquenique para servir os bonecos com maestria, colocando toalha bordada e um pratinho para cada um com uvas, bananas e morangos, ensina todo mundo a usar o guardanapo, convida o amigo do amigo e, pra comemorar a produção toda, faz tim-tim com os copos. Tim-tim!

Fazer tim-tim agradou muito. O pessoal todo, da Jessie à Cinderela, do Buzz ao Mickey, achou essa coisa de tim-tim muito divertida. Começamos a fazer tim-tim também de picolé, de maçãs, de milho cozido, de revistinha, de chave, de computador, de... língua. Ah, sim, é difícil ensinar que dar língua, o que é muito engraçado, deve ser feito só de mentirinha, em casa, com os pais. Por que? Ah, porque o moço da rua pode não gostar. Por que? Porque ele não acha engraçado como a gente acha. Por que? Porque ele não te conhece, não é seu amigo. Por que? Porque ele é estranho, e por isso você não dever dar trela pra ele. Por que? Porque... cadê o tim-tim? Vamos fazer um tim-tim?
Nesse Carnaval, dei vários tim-tins de língua. Foi a maior esbórnia.