terça-feira, 28 de setembro de 2010

Recordar (também) é viver


Hilda Hilst escreveu Baladas aos vinte. Jorge Mautner definiu como seria o mundo de hoje aos 21, com a Mitologia do Kaos. Meio século depois, as teses de sua trilogia reverberam como nunca pelas cabeças pulsantes.

De repente fiquei me perguntado o que eu, reles mortal, andava umbigando nessa idade. Então achei nos meus alfarrábios digitais um dos trabalhos preferidos da faculdade de jornalismo. Na folha de rosto estava escrito "Teoria da Imagem, prof. Flavio Martins, PUC-RJ, 1996".

Era um texto livre sobre uma foto escolhida pelo aluno. Típica pedida que podia acabar em desastre, mas grudei os olhos no Bispo do Rosário, com seu manto cheio de estandartes, e parti de buzum com uma amiga para a Colonia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, hospício onde Bispo permaneceu internado por cinqüenta anos. De acordo com boletins psiquiátricos, era esquizofrênico paranóide. De acordo com os curadores da Bienal de Veneza, era artista da estirpe de Duchamp.

O texto a seguir, é claro, nem de longe se compara aos feitos de Hilst e Mautner. Descobri que amadureço muito lentamente.


Fora dos trilhos


Cenário: Colônia Juliano Moreira, Rio de janeiro, Brasil. Reduto de loucos e experiências psiquiátricas idem. Em bom português, um hospício. O pedaço de terreno que aparece na foto é apenas um retalho de uma prisão da extensão do bairro de Copacabana. O chão de areia branca, o branco do caule das árvores ao fundo e por fim o branco das casas de janelas azuis dão uma sensação de alva paz. Ledo engano. Nem o verde das árvores ao alcance do repouso dos olhos deveria convencê-los de que havia lá tranquilidade. Mas o fato é que convence. Paisagem bucólica, ela sugestiona repouso, descanso. Pensando bem, até que não é de todo mentirosa. Afinal, a exclusão do mundo lá de fora, às voltas com a ditadura da década de 60, não deixa de ser um justificado refúgio. Um diáfano “até logo” do mundo real. No caso de Arthur Bispo do Rosário, o protagonista da cena, um opaco adeus. O mundo dele cresceria ali, sobre o chão de terra batida, que guardaria pegadas de tênis bamba por quase meio século.

Tênis mais azuis do que a calça do uniforme, de onde o ator da cena tirou fios para bordar o manto com o qual se apresentaria a Deus. Visto de longe parece um agasalho peruano, mas basta o zoom para que os bordados desfaçam a primeira impressão. Detalhes, o mundo é feito de detalhes. Muitas vezes são pesados quando os carregamos nas costas. Quando carregamos inconscientemente, então, pesam toneladas.

Há sempre os que reclamam da rotina e bem sabem que ela nada mais é do que uma assemblage de detalhes, como aqueles bordados no manto de apresentação de Bispo. Minúcias que despertam euforia e angústia. Apertadas, traiçoeiras, fazendo graça com seus labirintos, cativam olhos infantis. Comparado a artistas naïfe e representantes da pop art, Bispo jamais conheceu seus contemporâneos de empreitadas artísticas revolucionárias. Preso como um fio terra à terra de seu próprio planeta criado na Colônia, ele jamais teve contato com a arte daqueles tempos. Seu mundo era outro, alojado nos muitos objetos do manto.

Dia após dia, mais desenhos foram morar no manto sagrado. Dia após dia, outras caminhadas no terreno da colônia. Nessas horas a linha do trem conduzia passageiros invisíveis, algarismos romanos faziam a conta inútil das horas, um carrinho de supermercado levava compras que jamais seriam consumidas. Adquiridos todos os objetos de desejo e artigos domésticos úteis que permanecem nos armários do esquecimento, os desenhos dão espaço à singularidade. Porque os dias podem até ser parecidos, mas não venham dizer que cada um deles não tem um babado qualquer de especial. O mundo capitalista costurou a sociedade do consumo, mas a bricolagem recupera os últimos suspiros das metrópoles.Enquanto as mãos estão cansadas e os dedos doendo de tanto bordar em vão, ainda há os olhos das crianças, sempre prontos para acompanhar uma partida de pingue-pongue imaginária. Ou a caminhada de Bispo.

O ciclo se fecha. Visto o manto, entende-se um pouco melhor os passos de marcas discretas no chão de terra branca. Passos lentos e experientes. Sabem para onde estão indo. O manto recebe o vento do impulso e levanta-se, confiante. Estóicas asas de um vôo turbulento. Bispo ganha altura em direção ao horizonte infinito. As árvores disfarçam os muros, o sol discreto é testemunha, assim como uma única pessoa perto das casas. Mesmo assim não vale, ela está de costas. Cúmplice da viagem só mesmo o manto-tapete-voador. Falta pouco para ele sair completamente de cena. O movimento se faz firme, decidido. Traduz toda a consciência do destino e dos passos disfarçados de tênis bamba. O adeus fica no ar. Para o que serve a despedida, se o tempo não estraga os bordados?


Trilhos finais

Silêncio. O sono dorme. Ondas coloridas amortecem os sonhos, outrora pesadelos. O único ruído vem do ressonar do escuro, cansado, anestesiado, com medo do claro. Com medo do amanhecer. As idéias, sufocadas durante o dia, se trancafiam na noite e nela procuram proteção. Acima de tudo, precisam de sanidade. Fechar os olhos é abri-los para um enorme espelho, esquecido no breu e lembrado na mais pura inconsciência. Nele nada se reflete, mas nem por isso nada se vê. Pois é na quietude e no relaxar de exaustas mãos que as imagens se revelam. Não importa se contorcidas ou não. Serão eternamente verdadeiras.


Quem quiser conhecer vida e obra do Bispo pode procurar pelo livro Arthur Bispo do Rosário, o senhor do labirinto, de Luciana Hidalgo (Rocco)

Em breve, pérolas do mestre Mautner pra vocês. Não percam.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O gato e as cartas


Habilidoso e rápido com as mãos, o gato de Alice embaralhava cartas sem que suas unhas rasgassem valetes nem damas. Fazia acrobacias com os ases e as copas enquanto explicava como seria a fundação do seu castelo moderno.

– Vejam bem, vou fazer a estrutura em círculo, como uma arena, um pátio interno, um panóptico se preferirem. Como uma torre moderna, uma Pisa rarefeita. Céus, como vocês me fazem ser prolixo. Estão vendo? Já temos aqui a base.

O castelo redondo ia sendo construído numa velocidade sem precedentes.

– Viram só? Já temos o terceiro andar. Agora vou deixar espaço para janelas.

As cartas iam subindo, subindo, e pareciam misturar as histórias buscando um pé de feijão gigante nos céus. Todas se equilibravam com elegância, como se tivessem nascido para estarem, cada uma, no seu devido lugar.

– Agora mais torres. Eu sempre disse isso à Alice, mas aquela garota estressada estava sempre tão preocupada em aumentar ou diminuir de tamanho que não prestava a mínima atenção. Torres são fundamentais. Para poder enxergar longe.

O castelo já era maior do que o gato, que levitava distraidamente para continuar construindo novos andares numa rapidez sem precedentes antes dos precedentes. Em poucos segundos ele estava tão alto que, visto do chão, parecia pequeno como um gato de verdade.

– Não sei se vocês já repararam, mas eu posso continuar nisso indefinidamente. Ouviram? In-de-fi-ni-da-men-te! Vão ficar aí de boca aberta e me deixar sumir no céu com esse castelo? Ou querem que eu pare por aqui? Sim? Até que enfim!

O gato desceu do décimo andar como uma pluma, dançando pra lá e pra cá divertidamente até sentar no chão numa pose um tanto professoral. Esticou as patas, espreguiçou-se e disse:

– Eu sempre falei isso para a Alice, aquela garota teimosa, mas ela nunca me ouvia. A vida é como esse castelo de cartas. Pode ir sendo construída in-de-fi-ni-da-men-te, anotem aí, in-de-fi-ni-da-men-te, mas também pode, ops, cair num segundo!

Com a ponta da unha do seu indicador, fez um gesto de quem quer cortar a cabeça de alguém e derrubou a sua torre de dez andares e uma cobertura num só golpe. Gargalhava.

– Vocês precisavam ver as suas caras agora! Ó, vida, o castelo ruiu! Só faltam os beicinhos... não chorem, seu patetas. Ah, se a Alice me ouvisse. As torres caíram porque assim é um castelo de cartas! É como a vida. Constrói-se tudo em bases muito rarefeitas e, por isso, de vez em quando a casa cai. Mas é claro que cai! É feita de cartas! Já viram um quatro de ouros feito de cimento?

O gato se ajeita, respira fundo e sorri.

– Por isso digam a Alice e não esqueçam: o importante é conhecer as cartas, guardar os coringas, entender os naipes e as regras dos jogos. E jogar. Embaralhar. Jogar de novo. Embaralhar de novo. Trocar de jogo. Embaralhar. Dar as cartas. Apostar as fichas. Perder de novo. Embaralhar. Fazer o castelo. E, quando o castelo cair, começar tudo de novo.

Espreguiçou-se mais uma vez, deitou esparramado no chão e abriu um sorriso ainda maior.

– É tão divertido!

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Àqueles que zumbem



Escritores freelancers são, geralmente, seres de saúde frágil. Tensos, com vontade de comer o mundo e uma certa dificuldade para pôr os pés no chão, costumam sofrer além da conta com detalhes insistentes da vida como contas a pagar, prazos, revisões intermináveis de texto, problemas com o marceneiro, odiosas listas de supermercado. Com isso eles produzem de forma nada poética gastrite, dor nas costas, zumbido. Sim, zumbido. Tinnitus, para os íntimos.

O meu zumbido começou há dez anos, depois de uma crise de tendinite. LER, para os íntimos. A minha cervical pediu as contas, mandou recado à patroa dizendo que estava muito cansada e deixou de lembrança tonturas, enjôos e, tempos depois, um zumbido persistente. Tipo apito no ouvido direito, tipo chiado no esquerdo.

Viraram-me de cabeça para baixo, sacudiram um pouco e não descobriram nenhuma causa orgânica para tal piada de mau gosto das minhas orelhas. Culpou-se, então, a pobre da cervical, que deste então vem se tratando com ioga e massagem e, agora, passou pela via crucis de uma semana de abstinência de café. No segundo dia o cérebro adernou, levantou bandeira branca e deu sinais de que ia abandonar o bote, despedindo-se com um gugu-dadá babado e quase imperceptível. Até hoje continuo tentando me comunicar com ele de forma inteligível – não sei se venho tendo sucesso, sinceramente. Também perdi o discernimento depois de tantas doses de descafeinados.

Abuso de cafeína pode ser uma das causas de zumbido. Muitas vezes basta uma semana de abstinência para que o chiado ou apito sumam ou diminuam o volume. Aprendi isso na palestra realizada aqui no Rio pelo Instituto Ganz Sanchez, da Dr. Tanit, reconhecida hoje como a melhor especialista no assunto do Brasil. A palestra fez parte da Campanha Nacional de Alerta ao Zumbido. Ao contrário do que se imagina, o zumbido é muito comum. E antigo. Van Gogh teria cortado a orelha por isso e Beethoven, em carta ao irmão, escreveu que seus ouvidos "apitavam dia e noite".

Hoje, cerca de 17% das pessoas no mundo sofrem do mal, o que representa mais do que asma, gota, cegueira ou Alzheimer, por exemplo. No Brasil, fazendo as contas, isso quer dizer que 28 milhões de pessoas tem zumbido!

Várias causas de zumbido já são conhecidas e algumas são até fáceis de tratar, como o abuso de cafeína (mais do que três xícaras pequenas por dia), de doces e alimentos gordurosos. Outras causas comuns são exposição a sons altos, otites, labirintites, envelhecimento, diabetes, pressão alta, doenças do coração, da tireóide, problemas emocionais. Uma única pessoa pode, portanto, ter várias causas para o zumbido, e é preciso atacar em todas as frentes.

Há vários tratamentos para o zumbido e é importante procurar um otorrino de confiança. E para evitar que ele se manifeste é preciso controlar o estresse com atividades físicas e relaxantes como... ioga e meditação. Bingo! Juro que foi o folder explicativo que disse isso e não a iogue aqui, crianças. Mas lendo o livro da Dra. Tanit, Quem disse que zumbido não tem cura?, tive a certeza definitiva que tenho mesmo um pezinho 39 na India:

Surpresos com o baixo índice de queixas de zumbido no país, os médicos resolveram averiguar. Vai que a cúrcuma, além de prevenir Alzheimer, também evita o zumbido, devem ter pensado. Depois de pesquisas e entrevistas, perceberam que muitos indianos têm, sim, zumbido. Mas eles acreditam ser o zuim um sinal de que os deuses estão dentro da pessoa, conversando com a sua alma.Portanto, ele deixa de ser um incômodo para se tornar uma benção. E benção não incomoda à noite nem angustia a vida.

Há! Como o meu papo interno não sumiu completamente com a abstinência de cafeína, vou levar fé nessa tese. Fico com os deuses.

Boa noite, crianças. Apreciem o silêncio enquanto ainda é tempo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Balada

Água esparrama em cristal,
buraco de concha, segredarei em teus ouvidos
os meus tormentos.
Apareceu qualquer cousa em minha vida cinza,
embaçada, como água
esparramada em cristal.
Ritmo colorido
dos meus dias de espera,
duas, três, quatro horas,
e os teus ouvidos eram buracos de concha,
retorcidos
no desespero de não querer ouvir.

Me fizeram de pedra
quando eu queria
ser feita de amor.


Essa é Hilda Hist aos vinte anos. Quem é gênio nasce gênio.

p.s. O título, para quem não sabe, não remete aqui a uma saída para uma boate. Não, meninos, balada também é um gênero poético, que remete ao poema escrito para ser acompanhado de música em bailes e festas. É um gênero caracterizado pelo uso do estribilho e também pela ausência de rigidez no número das estrofes.
Quem quiser mais que se delicie com Baladas, da Ed. Globo, na bela coleção da obra completa (ou quase)de Hilda Hist que, infelizmente, já não escreve mais baladas. Ao menos não por aqui no mundinho.

Bom feriado, meninos. Louvem a independência.