domingo, 8 de novembro de 2009

Isto É jornalismo?

Respirem fundo, crianças, que a história é um tanto longa e triste:

Demorei muito tempo, mais do que devia, a ter coragem de me apresentar como escritora. Por muito tempo, quando precisava preencher algum cadastro, jogava lá no espaço em branco que vinha depois de “profissão”: jornalista. Afinal, é essa a minha formação e já trabalhei o bastante na área para continuar me considerando como tal. Mas a verdade é que nunca me senti jornalista na alma.

Certa vez, fazendo uma matéria com o já falecido Manuel Brito, ex-dono do JB, sentei para conversar um pouco sobre o meu personagem com Wilson Figueiredo, então um dos melhores colunistas do jornal. A minha tenra idade de estagiária, no entanto, deve ter lhe inspirado um certo comportamento paternal. Quando eu menos esperava, me perguntou por que eu havia escolhido o jornalismo. “Porque gosto de escrever”, respondi imediatamente. “Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra!”, ele rebateu. O tempo passa e voa e ele estava coberto de razão.

Quando me formei, não vou dizer há quantos anos, era cheia de ideais. A minha formatura, aliás, foi das mais lindas e vanguardistas da PUC. Nos formamos em pleno Pilotis, com faixas coloridas ao alto decorando o cenário de nosso talk show. Organizamos uma rodada de entrevistas com os professores que mais gostávamos e fizemos uma espécie de programa piloto de TV. Nada disso foi filmado, é claro, porque também éramos, ainda, jovens universitários ingênuos e um tanto desligados. Imperdoável descuido. Adoraria rever aquele momento. Talvez assim eu pudesse, de alguma forma, recuperar aquele afã de mudar o mundo através do jornalismo.

Aos poucos, no entanto, entre uma e outra redação, entre uma e outra reportagem, o talk show idealista foi se desmanchando na minha memória. O embate com a irritante e insistente realidade acabou fazendo com que eu me virasse, tal qual planta buscando a fotossíntese, para a seara editorial. Ali eu enxergava mais o sol e respirava mais ar puro. E, principalmente, ali eu teria condições de ter mais cuidado com o que escrevia. Ao me recusar a continuar vendendo o corpitcho a deadlines perigosos, eu poderia me dar ao luxo de fazer pesquisas decentes e, assim, evitar erros indecentes.

Hoje é com certo alívio que percebo essa guinada. Sou imensamente mais feliz sabendo que escrevi A bela menina e não a reportagem da Isto É dessa semana, com o infeliz título "A princesa do tráfico". Do meu lado do balcão, por exemplo, não vendi nenhuma das seguintes informações:

“Sem mesada suficiente para bancar o vício, ela chegou a tramar o próprio seqüestro para extorquir dinheiro da família”

Quando Ana Karina, a bela menina como vocês já sabem, “tramou o próprio seqüestro”, ela estava sendo convencida por um traficante de drogas dos mais perigosos na época. Gringo tinha mais de cem anos de pena nas costas e gostava de cobrar cachê pelas entrevistas quando era preso. E o dinheiro não era para sustentar o vício. Ana tinha então quinze anos e ainda (ainda) não era viciada. Se tornaria viciada depois do seqüestro, do estupro e de todas as acusações que caíram na sua cabeça adolescente – adolescente, diga-se, que queria era fugir de casa e das confusões da mãe, essa sim já uma dependente química.

“Ana costumava subir os morros de salto alto, usando roupas da grife francesa Dior, uma de suas preferidas. Passou a roubar jóias da família para trocar por drogas."

Se o jornalista tivesse lido o livro, saberia que isso não é verdade. As jóias que viraram pó eram da própria Ana, jóias de família que ela, se não tivesse passando por tanto sofrimento, teria conseguido guardar e passar adiante para as suas filhas. Só por curiosidade, o que o livro diz é o seguinte:

“O cordão era de ouro e trazia penduradas várias medalhas, também de ouro. Havia sido da minha bisavó, e minha avó me dera provavelmente em algum aniversário. Devia esperar que eu continuasse a tradição da família, passando um dia esse colar para a minha filha. Antes disso, muito antes, as medalhas começaram a virar cocaína malhada nas mãos do piscineiro do condomínio. Eram muito vagabundos aqueles papéis, eu devia ter pegado o meu dinheiro de volta quando aprendi a comprar cocaína de verdade. Em pouco tempo, cheirei o cordão inteiro. As coisas já tinham começado a perder o valor.”

Um pouco diferente, não?

Eu podia dizer ainda que Ana não usou heroína e que não tem mais nenhuma lesão no cérebro. Ou que o Gringo não liderava o tráfico do Vidigal. Era uruguaio e não tinha a menor intimidade com os chefões cariocas. Mas pra quê? As tintas são irredutíveis, radicais, irremediáveis.

Perceber que a matéria, no fim, nos leva à conclusão de que Ana foi uma vítima do vício e não um algoz da própria família, infelizmente, não apaga os erros anteriores. E esses são mais alguns deslizes involuntários, vamos dizer assim para sermos bacanas, adicionados à sua nada pequena coleção. Uma pena. O jornalismo com o qual eu sonhava na faculdade era muito melhor.

Para quem quiser acompanhar de perto esse imbróglio, o blog da Ana é A bela menina do cachorrinho.

Um comentário:

Barbara Axt disse...

Ei, estou aqui me perguntando porque eu nao estou lendo seu blog ha mais tempo. Sei la, eu nao tenho reader, tive que achar o blog do seu marido no reader do meu marido, e nos dois (eu e o meu marido, nao o seu) nos perguntamos ao mesmo tempo por que raios eu nao lia o seu blog.

Enfim, nao tenho uma boa resposta.

E ja teria infinitos comentarios a fazer sobre jornalismo e sobre biografias de gente comum (aqui existem projetos literarios nessa area, e tambem uma coisa tremendamente bem sucedida comercialmente que sao as revistas de "real stories" e toda uma industria em torno disso. Sabe o "eu, leitora", da Marie Claire e afins? Entao. Uma industria disso).

Mas vou ficar por aqui no comentario, para nao ficar longo demais. Soh queria saber se vc ainda esta precisando de alguem para transcrever entrevistas, porque talvez eu tenha uma pessoa precisando de um dinheirinho para te indicar. Ou nao.

beijinhos e ate daqui a algumas semanas ai no Rio!