sábado, 31 de janeiro de 2009

Sente a maresia

Maresia tem nome
É esquina abrupta
Que te abraça lambido
Névoa lânguida
Que te molha disfarçado
Instância rarefeita
Que resolve problemas
Nem pensados
Nuvem disfarçada de gozo
Água transmutada em prazer
Vida suada, pele grudada
De acontecer, anoitecer
E começar tudo de novo
Seco-molhado
amanhã

Hoje é sábado, crianças. Desliguem esse computador e corram para a praia!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O tigre e o macaco

A conversa, a princípio, parecia amena. Os dois já haviam passado dos trinta: o cara era forte mas sem jeito de armário prensado. O cabelo, grosso e meio grisalho, estava preso numa espécie de rabo-de-cavalo baixo e a barba era daquelas quase selvagens, aparada apenas no bigode e nas partes mais altas das bochechas. Eu sei, deve existir um nome para esse estilo, mas não tenho nenhum barbeiro por perto pra perguntar e o meu papagaio não parece entender do assunto. Dito assim parece que o homem era um tanto, como dizer, diferente, mas as feições do rosto eram delicadas e os olhos agudos, o que, junto com uma camisa social azul, equilibrava toda a figura, dependendo do que vocês entendem por equilíbrio. Ela, um pouco acima da balança para os padrões anoréxicos atuais, usava calça justa de tecido sintético, blusa branca com borboletas douradas, sandálias douradas de saltos altíssimos e eu poderia dizer que seu cabelo também era dourado, mas a verdade é que ele estava mais para o branco, ou aquela cor de farmácia que chamamos de louro por, sei lá, piedade daltônica. Não pude ver direito seu rosto, mas parecia bonito e maquiado.
Era um segundo, quem sabe um terceiro encontro do casal. Pareciam estar se dando bem. Até que Jesus sentou à mesa. “Por que, você não acredita em Jesus?”, ela perguntou rindo, assim como quem pergunta se alguém duvida que o céu é azul.
O clima, pude sentir a uma mesa de distância, ficou tenso. Muito tenso. “Qual Jesus, o que escravizou todo o ocidente?”, perguntou, já impaciente, o barbudão. “Não, o Jesus que só fez coisa boa pra todos, foi crucificado e ressuscitou três dias depois.”
Ui. A esta altura tive que desviar o olhar, porque estava claro que eu parara de tomar o meu chá de camomila para ouvir a discussão. Não pude continuar a minha leitura labial, mas ouvi algo como “Ah, pelo amor de Deus”, do outro lado. A loura das borboletas, ignorando a impaciência do cabeludo, começou a pregação. Disse que o levaria para a igreja dela, que ele podia até ficar bravo agora mas que, no dia em que tivesse Deus no coração, ele a agradeceria. “Eu acredito em Deus e no Espírito Santo, é só isso, é muito simples”, ela dizia, como quem ensina uma receita de bolo.
Impasse. Foi criada, ali naquela pequena mesa, uma extensa e incontornável faixa de Gaza. “Não dá, já vi que não dá, você acabou de eliminar todas as chances de a gente dar certo algum dia, não tem solução”, disse o barbudo, pedindo a conta para o garçom. O assunto, pra ele, estava encerradíssimo. “A gente podia fazer várias coisas juntos, mas já era”, disse, resoluto.
As borboletas douradas se assustaram. E se arrependeram. “Você vai brigar comigo por causa de religião?”, ela disse, e não pude ver porque ela estava de costas, mas tive a impressão de que seus lábios estavam trêmulos. “Não, não estou brigando, você fica com Jesus e a gente termina por aqui, numa boa”, ele disse, se levantando da mesa. Ainda ofereceu uma carona, mas deu as costas depois de vários beicinhos e súplicas para que ele sentasse de novo. E aceitasse Jesus e topasse ir à igreja, de preferência.
As borboletas ficaram sozinhas, encarando um copo de mate, tomando coragem para voar dali. Abriram a bolsa várias vezes, quebraram uma cartelinha de chicletes, colocaram dois na boca, retocaram o batom e, em cima do salto, saíram do Café seguras de si. Ou ao menos era o que parecia.

Depois dessa cena, que parou o ambiente, não conseguia parar de pensar no Aravind Adiga. Se ele estivesse aqui, provavelmente escreveria, depois disso:
Há!

The White Tiger é, de certa forma, um libelo contra a hipocrisia religiosa e espiritual. Ao contar a história de um servo indiano de casta baixa, Adiga esfarela todas as metáforas indianas ligadas à iluminação que, ao mesmo tempo em que movem milhares de pessoas à Índia todos os anos, também fazem, de certa forma, com que milhões de locais sejam escravizados, vivendo única e exclusivamente para o enriquecimento dos estrangeiros que tomam o país. Mas o que se poderia esperar, diz Adiga, de um país que venera o Hanumah, o macaco que virou mais um dos mais de 33 milhões (!) de deuses hindus exatamente pela dedicação servil dedicada a seu mestre, Rama?
O White Tiger, tigre branco selvagem e raro, único em sua geração, não nomeia o protagonista à toa. É ele, o tigre, que consegue romper as grades e ganhar, com critérios éticos pra lá de discutíveis (mas isso é outra história), a sua chance de, finalmente, olhar o mundo com os próprios olhos. É aí que ele decide o que parece ou não ser a tal da verdade.
Assim como um servo indiano, que aceita entregar sua vida a um mestre por pura falta de opção econômica mas também por doutrinação, a loura das borboletas também me pareceu presa. Não a uma casta, mas à intolerância e à incapacidade de olhar para os lados. Seus deuses são só dois, o que poupa um pouco do trabalho, mas ela, como Hanumah, não sabe viver fora do próprio templo. E acredita, pia e um tanto arrogantemente, que está fazendo um grande bem ao outro quando se dedica a convertê-lo. Há!
Um pouco de filosofia, então, para amainar o clima: como diria Descartes, a própria idéia de Deus que há dentro de nós é uma prova lógica de que ele existe. Afinal nós, imperfeitos, jamais seríamos capazes de desenvolver a idéia da perfeição. É por isso que, segundo o filósofo, Deus já está carimbado no nosso cérebro. E, em alguns, também no coração. Mas isso não é ele quem diz.
Simples, não? Então eu lhes pergunto, meninos, por que tanta pregação? Por que tantos códigos, condutas, regulamentos, agregações? Por que tantos telhados que desmoronam matando inocentes enquanto seus donos fazem shopping na Florida?
Também não sei dizer, ora, quem sou eu. Só sei que The White Tiger, por vários outros motivos, é um dos melhores livros que já li. Tirando os da Hilda Hist e o Salinger, é claro.
Se cuidem. Os deuses andam cansados.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Money money

Então você respira fundo, relê pela décima nona vez, confere as informações pela vigésima nona, colore todo o documento com energias positivas (rosa de amor para que ele seja bem recebido pelo destinatário), fecha os olhos e, com o dedo trêmulo e um pouco suado, aperta a tecla enter.
O que saiu da caixa postal num segundo tenso, esperançoso e irremediável não foi um capítulo de livro nem um texto de encomenda. Foi, finalmente, um orçamento de gente grande. Pela primeira vez na vida, você cobrou o que realmente gostaria de receber por um trabalho, o que de fato é justo que você tenha em mãos em troca, ora bolas, do seu rebolado. Mas o que fazer com o frio na barriga que dá depois?
É aí que a via crucis começa. A gastrite que andava quieta piora a cada dia que passa sem uma resposta do outro lado da máquina. Você tenta ficar zen, você medita, você vira de cabeça pra baixo, toma passiflorine (recomendo, queridos, a tarja é transparente mas juro que funciona). No entanto você não é de ferro. E a espera te deixa loooouca.
Do que se conclui que esperar, essa arte dos motoristas, como diria o Aravind Adiga (companheiro fiel nas horas de angústia), também é aptidão básica e fundamental para um escritor freelancer, esse bicho sinistro que vive debaixo do solo conversando com as minhocas. A terra (fértil, espera-se), fica lá, sendo mexida e remexida, revolta, aguada e adubada, mesmo que nem uma folhinha apareça no andar de cima. Não sabiam dessa? É a boa, velha e, ok, um pouco piegas metáfora do bambu. É que o bambu, antes de mostrar o nariz, cresce pra baixo, para firmar a base. Só depois é que ele desponta acima do solo, e assim engana-se quem, nessa hora, diz “Até que enfim”. Trabalho da pesada já estava sendo feito antes. Não é bonito, crianças? O que seria da carteira vazia sem consolos como esse?
Boa sorte pra vocês também.

p.s. Citei aí em cima o Aravind Adiga mas o fato é que ainda não posso falar sobre The White Tiger. Minha respiração continua curta e ofegante e temo um ataque cardíaco.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Eu disse que The White Tiger não parecia nada alentador? Não, meninos, ele é muito mais do isso. É um soco no estômago! Um soco bem escrito no estômago! Quando eu conseguir respirar de novo explico.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Tema da redação: a volta das férias (vale nota)

Acabou-se o que era doce. Depois da romaria hospitalar que virou o meu final de ano, tirei uns dias para checar o mar de Búzios, que não sou de ferro nem nada. Dei dois mergulhos, tirei o mofo, revi a rua das Pedras e lavei a alma. I’m back, cambada. E pronta, assim espero, para um ano de muito trabalho. São, na verdade, seis livros e um roteiro à vista. Dos livros, três são encomendas já razoavelmente fechadas e os outros ainda são projetos, um deles em captação. Não é bastante? Pois é. Na viagem de volta para o Rio, viemos ouvindo Leonard Cohen, que adoro. Uma das suas letras diz “When they said prepare / prepare / I wondered what they meant.” É isso. O que é se preparar, afinal? Qual a fórmula? Como saber quando estamos prontos para a paulada? Ó vida.
A verdade é que ando crente de certezas, umazinha ou duas, gente, algum horizonte por favor. Mas a vida, especialmente a de um freela, é como a Índia de Paul Theroux. Em The Elephanta Suite, que li agora nas férias, o autor esmigalha todas as crenças numa Índia espiritualizada, elevada, humanizada. São três histórias e três solavancos. Daí você levanta da posição de lótus, cambaleia e sente o cheiro gelado do ceticismo. A Índia de Theroux, ele mesmo um viajante experiente, é um país de contradições, onde "as pessoas são muito pobres para cumprir as leis", onde alguns gurus tiram proveito da credulidade alheia, a prostituição não é apenas questão de sobrevivência e crianças abastadas crescem sem a menor idéia de que existem pobres no seu país. No meio disso tudo, é claro, reina o mau cheiro, a fumaça, o barulho e as buzinas dos riquixás.
Não vou dizer que não esperava nada disso, mas todo mortal que pratica yoga torce, lá no fundo, para que o cenário hindi não seja assim tão desanimador. Não é toa que acabei esse livro e comecei outro de um indiano, esse ganhador do Man Booker Prize, o Aravind Adiga. Mas The White Tiger também não me parece nada alentador. Deve mandar o Ganesha para as cucuias. Ai, crianças, é tão duro. Experimentem sentar de pernas cruzadas, fechar os olhos e respirar fundo, quem sabe assim vocês não crescem tão rápido.
Namastê, anyway. Bom 2009 pra vocês também.