sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Resoluções no paraíso

“Você já voltou a escrever?” , me perguntam, e sinto como se a frase pinicasse a minha medula. É natural que me perguntem, afinal é isso o que eu faço da vida, ou ao menos é no que ainda acredito, mas é que fazer isso era bem mais fácil antes da Alice nascer.

Vejam bem. O dia com um bebê consiste em tarefas árduas e braçais, do tipo trocar fralda quinhentas e uma vezes, dar banho duas, levar para passear de manhã e de tarde, dar papinha três vezes, mamadeira duas e suquinho uma, secar baba, trocar fralda quinhentas e duas vezes, brincar fazendo aviãozinho, e, entre outros afazeres enlouquecedores como administrar montanhas de roupas sujas, beijar na barriga até ouvir a risadinha que tira todo o cansaço dessa rotina diária repetitiva. Tudo bem, vocês vão dizer, mas não dá tempo de escrever nem um pouquinho?

Bom, com a ajuda de uma boa babá e do santo protetor dos escritores (desculpem, não tive tempo de pesquisar qual é), até dá. Mas não é o que entende o seu cérebro, aquele que gosta de pensar sem prazo. O tempo interno de um escritor pode ser bem diferente daquele ditado pelo relógio, o que marca a hora de ir para a pracinha justamente quando você havia tido uma bela idéia para um texto. Depois de esticar o tapetinho na grama e tirar os brinquedinhos da mochila, aquela idéia vira apenas uma cosquinha e, de volta pra casa, na hora H de fazer a moçoila dormir, tal idéia, se é que era de fato uma, não é capaz de lembrar nem que perdeu o acento para os portugueses depois do novo acordo ortográfico.

A dura verdade é que a vida de mãe não combina nem um pouco com o processo criativo, e estou descartando aqui a mom lit, que não é a minha praia. Há quem diga que a lida com um bebê é muito inspiradora, e é. O que não quer dizer que seja traduzível em alguma linguagem artística. Um bebê é fofo e se basta e, a não ser que a idéia seja escrever livros infantis, a coisa fica meio esquisita para quem só tem um desses de matéria-prima e já não lembra mais o que é sair para visitar uma exposição, comprar um livro e se permitir viajar um pouco num café. Some a isso uma sociedade que supervaloriza a infância e todo o seu enorme consumo e tem-se logo, ao menor descuido, uma mãe culpada por sua justificável frustração pessoal.

Eu não, violão. Quando decidi ter filho também decidi que ele ou ela viria para compartilhar da minha felicidade, e não vice-versa. É um peso muito grande para uma criança ser a razão da felicidade de seus pais. Bom mesmo é que ela aprenda a ser feliz tendo bons modelos. Essa deveria, penso eu, ser a cartilha das mães, mas odeio quem acha que pode escrever cartilhas. Então detectei o perigo e decidi, antes de perder completamente a mão para a pieguice da doutrinação, usar uma sala comercial perto de casa para voltar a escrever algo que preste, já que o home office de sempre não está funcionando. “Por que não funciona? Porque sua filha fica querendo você?”, me perguntou uma amiga.
Não. Eu é que fico querendo ela.

2013, meninos, vai começar diferente. Vou ali na esquina fugir da Alice, que é para ela aprender desde cedo a fugir de mim também.
Felizes novidades para todos nós!



quarta-feira, 5 de dezembro de 2012



A internet dá pau e você liga para aquela empresa que todo mundo odeia. Conversa com uma máquina por um bom tempo, pensando em quando foi que as pessoas se acostumaram a responder perguntas gravadas teclando números. Depois de uma longa espera, em que você lê um capítulo inteiro de um livro dedicado a ensinar bebês a dormirem sem chorar, finalmente alguém com um sotaque estranho te atende do lado de lá. Longe daqui a xenofobia, mas ficou um pouco difícil entender o português espanholado do hombre.

Depois de baixar o volume da televisão e da babá eletrônica e grudar o ouvido no fone até ele ficar quente, você respira fundo e aceita marcar a visita técnica para a tarde do dia seguinte. Ah, problema seu se até lá você vai ficar sem internet. Qual a dificuldade de procurar um cibercafé para mandar uma apresentação por email? Coisa mais comezinha, essa reclamação, gente. A vida é tão simples, não é mesmo?

Como vocês podem ver, a maternidade me deixou ainda mais zen. Estou relaxadééérrima, ignorando emails, posts, jornais, o escambau. Zero estresse pra vocês, crianças, que o duro mesmo é acordar de madrugada com decibéis de choro equivalentes a dois aspiradores de pó (li isso numa revista e, como se vê, trata-se de uma informação muito útil para as faxineiras).

Estou de volta, meninos. Sim às fraldas descartáveis (hahaha para as ecológicas), não às chupetas (hohoho), um tímido bronze de tanto ir à pracinha (hihihi)e, com a música da baratinha na cabeça (hahaha, hohoho)... saudades de vocês.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012



Quando eu era criança, achava que não existia nada mais mágico do que conversar com as pessoas por páginas, em qualquer lugar, a qualquer tempo, trocando idéias por telepatia impressa. Ontem, olhando meu livrinho empilhado na Livraria da Travessa, a garganta apertou e os olhos se voltaram pra dentro, lá para aquela garotinha que queria sempre falar com os outros por escrito.
Alice, escrever é isso: conversar com o mundo.


segunda-feira, 3 de setembro de 2012


Peguem seus caderninhos, suas agendas, seus ipads, seus neurônios saltitantes e anotem:
Lançamento de À sua espera, novela da autora aqui que vos escreve, dia 18 de setembro, na Livraria da Travessa de Ipanema. A partir de 19h30m. Aguardo todos vocês com as mãos frias e pernas bambas. Até lá!



segunda-feira, 30 de julho de 2012

A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, apesar de resolutamente insistente.
Albert Einstein

Essa frase é ou não é de explodir os miolos? Não precisamos de uma madeleine para saber que o passado volta à tona e à ponta da língua sempre que desejamos. Nem de experiências da física quântica para ter certeza de que tais instâncias, passado, presente e futuro, se influenciam entre si em ordens nem sempre muito coerentes ou adequadas ao calendário.

Pois então posso dizer, sem medo, que não tentei engravidar por muito tempo. Tempo é relativo. As estatísticas também: quando as tentativas fizeram o primeiro aniversário, disse a médica especialista que 85% dos casais da nossa idade já teriam então recebido a visita da cegonha. Com isso poderíamos ter pensado que éramos retardatários. Ou especiais. Tudo, de novo, muito relativo.

No meio de tanto, a única coisa palpável até ano passado era um livro, escrito durante mais de um ano de tentativas frustradas. O lançamento acontecerá num futuro bem próximo, logo ali na esquina. Mas parece que ele já está pronto em minhas mãos com capa e tudo, porque, afinal de contas, carrega nele o passado que me constitui e assim faz parte do presente. Ele já está aqui hoje, junto com a Alice, que nem sabe ainda quem é Einstein. Donde se conclui que não são apenas as notícias de gravidez que nos fazem chorar. Outros nascimentos também tem força parecida.

À sua espera, uma novela de auto-ficção que flerta com a filosofia e marca minha ousada estréia na literatura, estará em breve nas livrarias através da editora Dublinense. Ate lá continuará em gestação no meu peito, que é onde geramos idéias que também têm vida e, quando alcançam o papel, poderiam se dizer até eternas – não fosse essa uma expressão quase petulante.





Em breve, numa livraria perto de você.

sábado, 9 de junho de 2012

Aqui trabalha-se

Pretendo me especializar em escrever rápido, habilidade, aliás, que procuraram me ensinar na faculdade. Não sei se foram bem sucedidos. Farei o teste agora, com o meu deadline de mamadeiras. Minha chefa é exigente e gritadeira, o que aumenta a pressão aqui do fechamento do jornal.
Penso em escrever por um tempinho pequenas crônicas, temas curtos, cenas que ficam me voltando à mente desde que tive a minha filha, Alice, há um mês.

Comecemos pelo hospital. Depois de seis horas de trabalho de parto coroadas (literalmente) por um nenenzinho que, afirmou a equipe em uníssono, é a cara do pai, recebi o carinho da minha obstetra que, segurando minha mão esquerda, disse que fui uma guerreira e que eu acertara em não querer, àquela altura, estar toda anestesiada depois de uma cesariana. Verdade. Foi um parto muito bonito, ela disse, e agradeci mesmo por tudo, emocionada. A equipe inteira, por sinal, foi de um cuidado especial, todos muito carinhosos, entrosados e bem-humorados. O que é muito importante para uma turma que aparece na Perinatal para uma cesariana rápida de emergência e acaba tendo que virar a noite, mas essa é uma história que conto depois.

Depois de tanto amor e ocitocina, então, depois de tanta dedicação da equipe e do marido, todos ligados para sempre por uma espécie de Síndrome de Estocolmo da maternidade, depois de tanto trabalho, eis que me vi finalmente... sozinha. Pouco tempo depois do nascimento, em que a Alice foi colocada no meu peito toda sujinha e provou que é boa de boca, o pai foi para o berçário com ela e o pediatra, a equipe insone se pirulitou e eu fiquei lá, sozinha na sala de parto, esperando o maqueiro me levar para o quarto.

Foram os quinze ou vinte minutos mais reflexivos da minha vida. Eu, que era a protagonista da história até então, já não comovia nem a enfermeira que passava pra lá e pra cá no corredor sem chegar perto de mim. Olhei para os lados e vi um cenário de batalha: lençóis empapados de sangue, restos de soro, poças de líquido amniótico no chão. Devo ser mesmo uma guerreira, pensei. E da Idade Média.

Eu ainda não sabia, mas essa era a minha primeira lição. Mãe é uma guerreira solitária, mesmo cercada de pessoas maravilhosas. É aquela que vai ficar feliz da vida de ouvir, vindo de algum lugar fora da sua visão horizontal, o mesmo maqueiro que a trouxe para a sala de parto, e conversar com ele como se fosse seu melhor amigo de infância enquanto os dois entram no elevador. Se eu não estivesse com tanta adrenalina circulante, era capaz de tê-lo convidado a entrar no quarto e pegar uma lembrancinha.

A luta aqui é entre lençóis ensanguentados e lençóis limpos, se é que vocês me entendem. Se não entenderem não tem problema, tenho a impressão de que isso também faz parte.





domingo, 6 de maio de 2012


Te espero. Faço isso há bem mais de nove meses, na verdade. Te espero, acho, desde sempre. E agora que você está a caminho fica até difícil de acreditar. Quase impossível aceitar a idéia de que essa barriga baixa, pesando no ventre como se fosse cair ali na esquina, vire você daqui a pouco. Que logo, logo verei seus olhinhos, sua boca, seu cocuruto. Vou querer cheirar a sua cabeça, beijar os seus pezinhos e chorar. É muito pra você? Pra mim também. Mas um dia você vai entender, porque também vai chegar lá se quiser. Também um dia vai poder olhar para a sua barriga e pensar: meu deus.
Te amo, filha. Venha em paz.


sexta-feira, 20 de abril de 2012

A vaca revelada

Nem só de barrigão vive esse blog. Aos 45 do segundo tempo, quase com um pé na maternidade, ainda deu para fazer um trabalhinho. E justamente para a filha da minha primeira biografada, Marilia Carneiro. Beatriz Carneiro é artista plástica e uma das pessoas mais interessantes que já conheci. Graças a esse trabalho, no qual escrevi sua biografia resumida para um dossiê, conheci um mundo à parte. Um mundo onde desejos como ver um açougueiro tirar a pele de uma vaca fazem todo sentido. É o que eu já havia aprendido estudando Foucault: na subjetivação, os investimentos são brutos e aparentemente inexplicáveis.

Sim, porque parece estranho tal desejo, não? Mas talvez só uma artista de formação robusta, tradicional e européia, com 15 anos de experiência na Suíça, tenha background suficiente para chegar nesse ponto, que é aquele em que validamos nossos impulsos sem medo, sem retrancas, sem preconceitos e, principalmente, sem saber bem o porquê. Sem ela soubesse, isso não seria bem arte.

Ou alguém explica racionalmente um poema? A vaca revelada, escrito por ela seis anos depois de ter sido recebida num matadouro na Suíça para ter seu pedido atendido, por exemplo, explica apenas o mundo interno e visceral da vaca que, segundo Beatriz, é o mesmo habitado por nós, numa espécie de coincidência fractal. Dentro da cápsula que protegia os órgãos do animal estavam “espaços microcósmicos / formas vegetais / ensangüentadas plantas marítimas / algas-tripas / estômagos-medusas / veias / pedras-vísceras”. É essa descoberta, exclusiva do seu olhar, o que define a arte. Arte é perspectiva, é ver aquilo que os outros não vêem. Ponto de vista é o que provoca mudanças, e perceber é desejar.

É nesse rescaldo, amparado pela Haute Ecole d’Art et Design Geneve, em Genebra, onde se formou, que Beatriz constrói seu mundo de peles curtidas e bolos de asfalto, subvertendo as formas e seus conteúdos, misturando técnicas antigas com novas e fazendo um passeio tátil pela arte, conduzindo idéias das mãos para os olhos. Minimalista, transita entre a escultura, a pintura, a palavra, a fotografia, o vídeo. Bom demais. Se eu pudesse, só fazia trabalhos desse tipo, que fazem valer cada tecla. Vão me entender melhor aqueles que visitarem o site do seu ateliê. Boa viagem.


Alice me espera. Uma arte diferente começa na minha vida.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Hoje ganhei R$ 24 de direitos autorais! Ainda não sei se comemoro no Fasano ou no Antiquarius.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Cohen e os cachorros


A barriga pesa, as costas doem, a insônia persiste e entro em balanço. Meu final de gravidez, já meio sabático, anda em módulo dormindo acordado, esquecido, confuso, sem foco, embaralhado. Faço listas e mais listas de providências e comemoro quando consigo riscar um pequeno item. Tento homeopatia, fitoterápicos, simpatias, promessas, chantagens com a Alice ("Se você deixar a mamãe dormir hoje ganha sorvete de chocolate amanhã", por exemplo), mas nada parece funcionar. Então me rendo e aviso, meninos: Vou lá e já volto. Blogueiras também têm direito a licenças médicas não remuneradas.
Enquanto isso, recomendo o CD novo do Leonard Cohen. Poeta, compositor e gênio, voltou à ativa depois de se retirar num mosteiro enquanto sua namorada queimava toda a sua pequena fortuna. U$ 5 milhões depois gastos pela malandra e eis que temos, graças a essa inspiração compulsória de um ex-aposentado setentão, o álbum que vem sendo considerado o melhor da sua carreira. É o que aprendi na faculdade: a criatividade é um cachorro bravo atrás de você.
Alice e eu, atualmente, como vocês já devem ter percebido, só entendemos de papagaios. Os cachorros estão quietos, comportados e sonolentos no canil.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Bye, bye, camelos




Uma vez iogue, sempre iogue. Inclusive, e principalmente, na gravidez. Daí que, devidamente autorizada pela médica e pela professora, continuei as minhas aulas de sempre. Yoga para gestantes que nada, eu continuaria lá na minha ralação. Ioga é autoconhecimento, e isso inclui reconhecer e respeitar seus limites, ir até onde dá e agradecer o caminho.

Pois é. Até que um dia você faz a ustrasana, postura do camelo, mesmo com um barrigão de seis meses, e descobre que não é bem assim. No dia seguinte a azia melhora por causa do alongamento do abdômen, mas uma dor lancinante do quadril já sobrecarregado te lembra de que, na gravidez, os limites mudam semana a semana e, se você não estiver beeem atenta, vai quebrar a cara – ou a lombar. Depois de um buscopam e um dia praticamente perdido, você reconsidera. Começa a achar que a yoga para gestante, aquela bem calminha, que quase se resume a sentar e fazer borboletinha, deve ser ótima. Principalmente se acabar com uma massagem e um abraço.

Como todo bom aprendizado, yoga é sabedoria com tropeços.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O primeiro Kindle a gente às vezes esquece





Ainda não contei pra vocês, mas no Natal ganhei um Kindle. Felicidade total. Agora leio livros gordos como o Maximum City, de Suketu Mehta, sentindo nas mãos apenas o peso de uma pluma. Não estou considerando-o o melhor livro da minha vida, como diria Cora Rónai, mas lê-lo no meu kindle faz valer a experiência. Além disso, como vocês já sabem, tenho certa obsessão por livros sobre a Índia. Ou melhor, tenho obsessão pela Índia, mesmo sabendo que, muito provavelmente, nessa encarnação ao menos, eu não terei coragem de ir até lá. E como não acredito em reencarnações, é de se presumir que eu fique mesmo apenas na vontade.

É claro que também fui ver a exposição India, no CCBB, que, aliás, termina nesse final de semana. Talvez seja a minha paixão pela ioga, que sigo fielmente há seis anos, mas o fato é que toda a coleção me emocionou: As fotos, os tapetes de parede decorativos, os artigos religiosos e até a sala de cinema de Bollywood, onde fiquei sentada um bom tempo vendo curtas indianos – todos, é claro, de qualidade discutível para os nossos padrões, que são igualmente muito esquisitos.

Desci do segundo andar direto para a livraria e dei de cara com o livro Ioga para quem não está nem aí, de Geoff Dyer, que estava querendo ler há tempos. A livraria, decorada com temas indianos, recendia a incenso, o que deve ter contribuído para que eu, num impulso, comprasse o livro sem respirar duas vezes. Subi as escadas para o café agarrada a ele, capa perfumada e conteúdo deliciosamente incorreto, o que sempre, a meu ver, também combina com os temas indianos.

Até hoje o livro continua cheiroso, e esse é o único consolo para o fato de que a idiota aqui poderia tê-lo comprado para o kindle, bem mais barato e na sua língua original. A tradução da edição da Cia das Letras, de Sérgio Flasksman, é boa como poucas, mas eu poderia estar bebendo na fonte. Ela só não teria cheiro de incenso.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Sobre o que não se escreve

Andaram me cobrando um novo post. O que é curioso porque, além de eu não ter leitores suficientes que justifiquem tal demanda, também ando pensando muito sobre o indizível, sobre o que simplesmente não encontra o caminho do papel. Sobre o que fica no ar e não sabe o que é tinta, nem tela, nem bytes. Muito menos esse umbigo falante chamado blog.

Fato é que desde que olhei para o espelho e reconheci nele, finalmente, uma grávida, minhas palavras mudaram sem que eu percebesse. Estão mais ariscas e exigentes. No fundo, aprenderam que não são sereias cujo encanto, por contrato da imaginação, é garantido. Há muito silêncio numa gravidez, e ele não vem do vazio ou do suicídio criativo. Vem lá de dentro onde muito se trabalha, mas não se decifra. Onde milhares de conexões neurais, musculares e orgânicas tocam juntas numa orquestra universal, onde só o que muda, nas apresentações mundo afora, são os endereços e os maestros, cada qual reservado a uma determinada crença de origem. Há os que acreditam em Deus e deixam tudo rolar como ele bem quiser, o que me parece sempre muito confortável, e há os que, como euzinha, queimam a mufa mais do que deveriam pensando em tudo, o tempo todo, até a cabecinha cansar e avisar que hoje tem de novo insônia, criançada.

Me pego lendo artigos sobre a opção pela tela em branco. Sérgio Augusto, no Estado de São Paulo, lembra que Sócrates não escreveu uma linha, e no entanto inventou a filosofia. Na literatura, grandes autores como Rimbaud também optaram pelo silêncio em algum momento da vida, alguns de maneira definitiva como o próprio poeta que, aos 22 anos, trocou a poesia pela aventura. Monsieur Teste, alter ego de Paul Valéry, lembra ainda Sérgio Augusto, não só desistiu de escrever como atirou sua biblioteca pela janela. Já Adorno achava impossível escrever qualquer coisa que fosse depois do Holocausto. E Enrique Vila-Matas cunhou o termo “literatura do não” para escrever sobre romancistas e poetas que nada escreveram, em Bartleby e Companhia. É evidente, meus caros, que tudo isso também é escrever.

No entanto, continua em outro artigo Antonio Tabuchi, mais um escritor que se deu ao trabalho de pensar sobre o que não se deve, “tudo isso naturalmente conduz a uma dimensão ‘paralela’, onde o não escrever é uma forma de vida, o silêncio pode não ser uma renúncia, mas uma conquista ou afirmação, onde o não existente impõe sua existência, carregada de um significado misterioso e insondável, como uma pausa, o silêncio de uma partitura musical, que pode resultar mais emocionante que uma nota.”

É claro e de uma obviedade galopante que não sou Rimbaud nem Vila-Matas, mas as minhas notas, ultimamente, também ecoam mais do lado de dentro, lá onde a Alice já gosta de chutar. Enquanto isso, praticamente toda ação criativa se resume a aguardar notícias da agente sobre o livro que escrevi durante os quase dois anos em que tentei engravidar. À sua espera é uma novela verborrágica e angustiada de 104 páginas. Mas agora o falatório acabou, e termino meus livros de encomenda a sopapos. Por baixo deles reina um silêncio do bom, uma paz sem letras, um encanto de sereias indizíveis. Converso com elas por telepatia, talvez, emudecida de espanto e gratidão. Não escrever, às vezes, é a melhor maneira de se expressar.