quarta-feira, 27 de maio de 2009

Vum ta tá

Antes de publicar aqui mais um catarrinho, tenho que conversar com vocês sobre o vum ta tá. Vum ta tá é o seguinte, acompanhem comigo: vum-ta-tá-vum-ta-tá-vum-ta-tá. A bolinha do karaokê cai sempre em cima do último tá, assim: vum-ta--vum-ta--vum-ta-, e o ritmo é esse mesmo, meio sincopado. Vocês aí que bateram os pezinhos no chão já entenderam. Estamos falando de uma valsa. Uma valsa alemã. Uma valsa alemã é bela e, como tudo que é alemão, também é rígida. Não tem jeitinho, rebolado nem gingado. É dançada direitinho, passos curtos pra lá e pra cá com um ligeira levantada dos pés ao final de cada movimento, para dar leveza e impulso. É bonito, gente, mas é tudo programado, dentro do script, sem guinadas nem grandes ousadias.

Pois bem. Em uma das nossas viagens para divulgar o livro Marilia Carneiro no Camarim das Oito, ganhei da Marilia esse apelido. Isso mesmo, eu sou uma vum ta tá. Estávamos em Belo Horizonte e, depois da noite do lançamento, esticamos para um jantar na casa de um chef e, conversa vai conversa vem, a coisa acabou na mais alta madrugada. No mesmo dia, de manhã, tínhamos uma entrevista coletiva no hotel. Bom, ao menos chamavam aquele lugar de hotel, mas eu tenho certeza de que era uma casa de repouso disfarçada. As janelas do quarto eram anti-ruído e as cortinas tinham o blackout mais poderoso de todos os tempos. A intenção dos donos era clara: que você entrasse, se jogasse na cama de molas americana, afundasse no travesseiro gordo e nunca mais acordasse. Ou melhor, que acordasse um mês depois para pagar a conta do que deveria ser apenas um final de semana.

Naquela manhã que ainda parecia noite, me senti na Finlândia. Nunca estive na Finlândia, mas deve ser assim viver sem a luz do sol. Era quase impossível sair da cama, ainda mais com uma leve ressaca. Mas lembrem-se, eu sou vum ta tá. Aos tropeços me arrumei, peguei até meu bloquinho para anotar contatos de jornalistas locais e, na hora marcada, cara limpa, eu estava lá. Se bem me lembro acho que passei até um batonzinho.

Fui a única. Nem os jornalistas apareceram. E olha que eles não estavam hospedados no mesmo hotel. Quando o atraso da Marilia já contabilizava meia hora nos meus ponteiros alemães, liguei para o seu quarto. Tirei-a de um sono profundo.

Mais tarde, num almoço, uma jornalista apareceu, leve e faceira. “Matei a coletiva”, disse, rindo e pedindo mais uma caipirinha. Gente, qual o segredo desses mineiros? Olhando aquela cena, aquela soltura toda, tirei o chapéu para a Marília. Ela tem toda razão. Eu sou vum ta tá em todos os espirais do meu DNA.

Isso tudo foi só para falar que a vum ta tá aqui sempre teve dificuldade de ler um livro sem passar antes pela introdução, pelo prefácio, por todo o caminho recomendado formalmente. De preferência, dando também uma olhadinha na ficha bibliográfica. Achava uma rebeldia sem tamanho pular essas preliminares. Com o tempo, no entanto, fui gostando de ler um livro sem ser antes influenciada por ninguém. Gostei de liberar as minhas próprias impressões e depois compará-las com o que diria o prefácio. Rebolei em plena valsa, crianças, uma loucura.

Por isso aqui vai mais um catarrinho sem bula. Sem explicações, sem sinopse, sem apresentação de personagens, sem justificativas. Virem-se. Aos poucos, com alguma sorte, vocês vão entender alguma coisa. E então a gente pode conversar de novo para que vocês me expliquem tudo. Sem hora marcada, é claro.

II

Esse incidente aconteceu no lançamento do livro de uma amiga minha, antes de tudo acontecer. Antes dos pesadelos, antes da pantera, antes da tragédia que virou a vida aqui. Dos meus 32 anos, é praticamente só o que eu lembro. Antes deste dia parece que nada existiu ou aconteceu. Dizem que é efeito dos remédios, mas pode ser choque. Não o elétrico, o psicológico. Estado de choque. Talvez esta seja a melhor maneira de definir os fantasmas que sobraram. Se é que eles estão por aqui, andam em estado de choque fulminante. Também falam em crise de abstinência, mas deve ser tudo junto, porque as overdoses continuaram, o que mudou foi a receita. O Clever, por exemplo. Agora ele deu pra comer lata velha de tomate. Diz que os fungos dão barato. As manchas verdes em volta da boca eu não sei se já são dos fungos, talvez seja coisa pior. O fato é que ele dá pulinhos quando encontra uma lata dessas no lixo, bate com a colher nela como quem entoa uma batucada e depois lambe como se fosse um doce de leite ou alguma coisa dessas doces que a gente tomava quando ainda existia leite. Outro dia ele também olhou comprido para um hambúrguer estragado, mas não fiquei para ver o horror show.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Fora de si

O jornalista e escritor José Castello é um dos entrevistados do meu livro Por trás da Entrevista. Isso ele sabe. O que ele não sabe é que também é meu mestre. Leio as colunas semanais dele no Prosa & Verso como quem saboreia palavras de um guru. Leio atenta e guardo tudo o que o meu limitado material cinzento permite. Ou seja, muito pouco. Mas há ensinamentos inesquecíveis, como o de sábado passado. A citação era de uma “idéia feroz” de João Cabral de Melo Neto: “Escrever é estar no extremo de si”. E agora é Castello falando: “Nessa última fronteira, em que o Eu desvanece, o escritor pisa a parte mais inóspita de si mesmo – aquela em que se transforma em outro. Literatura não é confissão, é invenção.”
Fim da aula. Lembro da reação dos meus pais ao lerem o que vocês seis vão começar a ler agora: “É muito estranho pensar que foi você quem escreveu isso”, disseram, em uníssono. Fiquei imediatamente feliz com a declaração, sim, de papi e mami – ou vocês acham que eu ia mostrar o texto para mais alguém? Naquela época eu ainda era sã, crianças.
O fato é que escrever é mesmo isso. Quanto menos você se reconhecer no texto, melhor. Sinal de que o ego deu um tempo e abriu espaço para o que realmente interessa, que é a tal da literatura. Bom, não sei se posso chamar o Romance Inacabado de Gaveta de literatura. Provavelmente não, mas vá lá. Ao menos é um voleio, um gingar de corpo, um reboladinho. Molecas letrinhas urrando funduras.
E como já disse, aceito qualquer trocado. Afinal de contas eu podia estar roubando textos alheios, podia estar assaltando críticos, podia estar matando, mas estou aqui, trabalhando honestamente, oferecendo a alma e pedindo um minuto de sua atenção.
Poupem o motorista. A culpa toda é do trocador.

I

O que dava mais nojo nem era a saliva que jorrava na minha cara, era a língua rebolante, histérica, que não parava de se enrolar e mais parecia um bicho de tanta força que tinha. Uma minhoca rebelde, vamos dizer assim. Tirei forças sei lá de onde e arranquei um pedaço da minha blusa. Enrolei o pano em dois dedos da mão direita, dobrei e enfiei lá, naquela boca louca. Acho que consegui segurar a língua imensa, porque ao menos ele parou de revirar os olhos. A ambulância, porra, cadê essa ambulância? Nos seriados que via na Warner tudo acontecia bem mais rápido nestas emergências. E o dedo lá, na bocarra. Medo de ser mordida e perder a mão. Solta ele, berrou um cara que se disse médico, me empurrando. Aí foi patético. Fui empurrada para o lado mas como não consegui tirar a mão de dentro da caverna babada, tombei e fiquei presa ao corpo do epiléptico exausto. Vem cá, esse macaco aí é médico? Chama outro, gritei. Ele começou a fazer força para soltar a minha mão, mas aquela língua parecia mais uma algema. Inacreditável, fiquei pensando, e olha que nem tinha percebido ainda que, por causa do rasgão na blusa, meu peito todo estava aparecendo. Maravilha. Pior só escutar de algum imbecil que o pobre coitado da língua insana precisava era levar um choque.

Continua (se vocês seis quiserem)

terça-feira, 12 de maio de 2009

Bota-fora


Entrei na Garage Sale. Estou em liquidação. Bota-fora total. Preços inacreditáveis!

E tudo por causa da respiração. É que depois de inspirar e expirar em modalidades e ritmos até então inimagináveis, terminei o curso Arte de Viver preenchida com uma sensação de... catarro. Sim, em bom português, catarro do bom.
O curso terminou há uma semana e continuo tossindo os pulmões pelo avesso, o que faz com que a minha garganta fique irritada e eu me engasgue subitamente de maneira cinematográfica uma ou duas vezes por dia – geralmente em público. No início, mesmo sem perceber qualquer outro sintoma além da tosse, achei que tinha contraído a gripe suína. Já estava me despedindo do mundo cruel quando resolvi mandar um e-mail para a instrutora do curso e, quando ela confirmou que esses sintomas são comuns em alguns participantes respiradores, caiu a ficha. É claro.
O que aconteceu foi que o processo de respiração me proporcionou uma faxina interna daquelas. São anos e anos de ar parado e asmático mandando a conta. Mas também são anos e anos de quietude, de textos feitos pra dentro, de palavras confinadas ao espelho da crítica interna. Agora, que tenho blog e tudo, está na hora mesmo de expectorar. De cuspir fora medos, algemas, gradis. De abrir o peito, literalmente.
Mas para que um ar fresquinho entre, é preciso liberar a nhaca que estava lá dentro. E vou dizer uma coisa, meninos, a nhaca era grande. A última vez que tossi e me engasguei assim como uma condenada retorcida foi há mais de dez anos, depois de uma viagem ao exterior. Numa dessas vezes, tossi tanto que vomitei em pleno shopping (desculpem, contar isso também faz parte do meu processo, entendem?). Naquela época, o que eu estava botando pra fora era stress em estado bruto, mas um stress não expirado e muito menos nomeado.
Só que agora o meu super catarro tem nome, senhores. Não tem título, mas tem nome. Ele se chama Romance. Ao menos é assim o título do arquivo do word, “Romance”.
Não é nada que eu preze enormemente, tanto que resolvi liberar aos poucos aqui, no Garage Sale, aceitando qualquer trocado e jogando-o aos tubarões da rede. Mas é um exercício de texto que, agora vejo claramente, me permitiu escrever A bela menina. Ele não tem lá muito valor por si só, mas sim pelo caminho que deixou pronto para os passos mais recentes, dados com relativa segurança.
Portanto, esse é o combinado. A partir de agora, em catarrinhos semanais, publico trechos do bom e velho e inevitável Romance Inacabado de Gaveta. Em troca, aceito receitas caseiras de xarope.
É como dizem: para abrir espaço para coisas novas, é preciso se livrar das velhas.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Arte de Viver

Como eu já disse, o espécime dos escritores freelancers costuma ser meio estressado. É dado a fases de insônia, ataques súbitos de gastrite, obsessões e ansiedades variadas.
Hoje já sou bem mais light, mais equilibrada e livre de somatizações, mas penei um bocado no passado. Comecei a procurar meu jeito zen de ser há quatro anos, quando aceitei que a minha mãe me levasse pela mão à sua aula de yoga. Gostei tanto que já sei que vou continuar até ficar velhinha. De lá pra cá tive alguns insights no corpo e na alma. Um deles me dizia para aprender também a meditar. Seria um canal de criatividade, me dizia a vozinha interior. Por isso, quando uma amiga me perguntou se eu não queria fazer o curso Arte de Viver com ela, topei na hora.
Pra quem não sabe, o curso Arte de Viver ensina técnicas milenares e poderosas de respiração, meditação e relaxamento (sim, é aquele da propaganda com a Juliana Paes). No último final se semana, um desses cursos acontecia aqui, no faroeste, numa sala do colégio Anglo-Americano. Eram quase 50 pessoas juntas respirando o que nem seus pulmões sabiam serem capazes. Os meus pulmões, asmáticos, estão boquiabertos até agora. Eles não sabem o que é uma crise há mais de dez anos e não conseguiriam mais reconhecer uma bombinha, mas mesmo assim ficaram impressionados com suas performances.
O curso é cheio de surpresas e, para que permaneça assim, não posso contar muitos detalhes. Eu não poderia contar, por exemplo, que em determinado momento me vi imitando um elefante. Nem que as lágrimas rolaram sem parar no último exercício, no qual experimentei um transbordamento de profunda gratidão por existir. Também não poderia contar que, por causa da respiração, acho que perdi o meu medo de altura.
Então o que vou falar mesmo, de verdade, é que o trabalho dessa organização, presente em mais de 100 países, é um dos mais lindos que já vi. Seus programas, creditados pela ONU e pela OMS, já melhoraram a vida de mais de 20 milhões de pessoas em todo o mundo. Também é a maior ONG em número de voluntários. Todos os instrutores do curso, por exemplo, são voluntários. O astral positivo até a medula de Renata Baldi, nossa professora, não deixava qualquer fiapo de dúvida quanto ao poder da respiração.
Recentemente, em Bangalore, Índia, onde fica o ashram do Arte de Viver, foram comemorados os 25 anos da Fundação. Na filmagem do evento, o que se vê é literalmente um mar de gente, mais de dois milhões de pessoas encobrindo os limites do horizonte. Foi uma das cenas mais emocionantes dos últimos tempos. Agora imaginem aquele oceano de amor entoando o OM. Me dá arrepio só de pensar. Deve ter sido um daqueles momentos que fazem valer a existência.
A vida é sagrada. Celebre a vida. Cuide das pessoas e compartilhe o que tem com os menos afortunados. Amplie sua visão, porque o mundo inteiro lhe pertence.”

Sri Sri Ravi Shankar
(fundador do Arte de Viver)