quinta-feira, 30 de abril de 2009

Consta não

GRAVAÇÃO Bom dia. Bem-vindo ao 102. Para telefone comercial, digite 2. Para demais solicitações, digite 3.

Carla digita o número 2.

CARLA Alô, eu queria...

GRAVAÇÃO Diga o nome da cidade de onde está falando.

CARLA Rio de Janeiro.

GRAVAÇÂO Entendi. Rio de Janeiro

CARLA (???)

GRAVAÇÃO Diga o nome do estabelecimento que deseja pesquisar.

CARLA Baton Rouge.

GRAVAÇÃO. Entendi. Barra World Shopping.

CARLA Não! Cadê o atendente?

GRAVAÇÃO Diga se o nome está correto.

CARLA Não!

GRAVAÇÃO Diga se o nome está...

CARLA Não!!!

GRAVAÇÃO Aguarde um instante. Já iremos atendê-lo.

Musiquinha

ATENDENTE (mal-humorada) Alô, 102.

CARLA Oi, eu queria o telefone da loja Baton Rouge, é B-A-T...

ATENDENTE Consta não.

Som de ligação concluída (tu-tu-tu...)



“Consta não”? Isso é pior do que ser atendida por uma máquina, gente! Meu Deus, a mulher desligou na minha cara! E se eu quisesse outra informação?

Mas eu não sei porque me espanto. Essa ainda é a Telemar.
Pouca gente sabe disso mas no início do século trabalhei longos três anos para a Telemar. Fazia a revista interna deles e devo dizer que hoje tal lembrança me dá uns arrepios nas costas. A única coisa boa daquela época é que o salário da revista, que eu fazia em duas semanas, me permitia escrever o livro da Marilia Carneiro nas outras duas semanas vagas do mês.
E também aprendi algumas coisas:
Fazer alguém esperar por você é realmente uma tática política. Certa vez esperei mais de duas horas por uma reunião e, quando marcava entrevistas, tomava o cuidado de enfiar na pasta os livros que andava lendo na época. Era a única maneira de não quicar na cadeira ou comer o meu crachá.
Os odiosos gerúndios (“vou estar fazendo, vou estar ligando”), que de fato não podem ser considerados erros gramaticais, já me disse em entrevista o grande gramático Bechara, nasceram sem dúvida lá. Assim como as expressões emprestadas e mutiladas do inglês. “Suportar”, por exemplo, significava, pra eles, “dar suporte”. Vinha de to suport que, em inglês, aí sim, significa dar apoio. Isso eu achava engraçadíssimo, porque acabava sendo, de certa forma, um ato falho coletivo: “Então nós vamos suportar esse programa...”, eles diziam, enquanto eu me contorcia na cadeira. Também ouvi o termo “splitar”. Esse foi o recordista. “ Split”, em inglês, significa separar, quebrar em uma ou mais partes. Então era assim: “Nós vamos, agora, 'splitar' esse processo, e na próxima etapa vamos estar divulgando...”. Nessas horas não era tão engraçado. Pra falar a verdade, eu tinha vontade de cortar os pulsos.
Mas o meu aprendizado mais importante aconteceu numa reunião com altos diretores da empresa. Gráficos à mostra, eles falavam dos lucros e dos novos direcionamentos. Fusões, investimentos em commodities e celulares eram, se não me engano, os principais objetivos. E durante a reunião, em que não abri a boca como de costume, percebi que ficara de fora um pequeno detalhe: a insatisfação do consumidor. Quando o assunto veio à tona (não por minha causa, é claro), a resposta foi curta e clara. O consumidor que se danasse. Eles não estavam, de fato, preocupados com ele. Havia muita coisa para lucrar antes disso. O atendimento que ficasse para depois, quando todas as possibilidades de crescimento econômico tivessem sido exploradas. Sim, é difícil de entender, mas façam um esforço: essa, simplesmente, não era uma questão. Entenderam?
Dentro da minha bolha auto protetora, fiquei me perguntando o que eles fariam quando chegasse a concorrência, como a da Brasil Telecom.
Bom, quem lê jornal já sabe que eles compraram a Telecom (provavelmente dando uma gorda gorjeta para o governo) e viraram de novo um grande monopólio.
E o atendimento? Consta não.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

SOS

Então está combinado. Eu continuo não contando os detalhes dos meus projetos secretos e vocês, com exceção da family, santa family, continuam não comentando.
Parece justo.
Ontem mesmo saí animada de mais uma entrevista com o militar. Percebendo a minha empolgação, meu marido vasculhou a sua coleção de filmes e me pôs para ver Nascido para Matar, de Stanley Kubrick. Já na primeira parte do filme, senti que o clima da história estava tenso. “Alguma coisa horrível vai acontecer, não vai?”, perguntei, já encolhida no sofá. “Vai”.
A minha primeira providência foi tirar o papagaio da sala. A segunda foi me afundar nas almofadas e continuar assistindo com um olho só. “Acho que agora você não precisa olhar”, disse o meu marido. Eu já estava com os olhos fechados há muito tempo.
Agora me digam, meninos: Como posso escrever a biografia de um militar se não consigo nem assistir Nascido pra Matar? O que é aquele gordo com cara de demo, gente? Eu só pensava em acender um incenso e gritar paz e amor, paz e amor!
O que eu faço? Não posso devolver o adiantamento porque ele já foi parar em contas, consertos de carro, pagamentos por serviços de pesquisa e transcrição de depoimentos e outras cositas.
Peço pra sair e encaro a humilhação? Consulto o meu papagaio? Mando um SOS em código Morse para escritores familiarizados com o tema? Socoooorro!
É isso que dá se meter a escrever por encomenda. Se vocês ainda não sacaram, isso é ser escritora freelancer. Não recomendo.

domingo, 19 de abril de 2009

Top Secret

Os meus cinco leitores andam indóceis. Querem saber, afinal, quais são os meus novos projetos. Pensei então em contar hoje, que estou com um tempinho livre antes de sair para mais uma entrevista. Seria legal é claro falar sobre eles, que são de fato interessantes, não fosse por um pequeno grande detalhe. Esses projetos interessantes são também...confidenciais! E agora, José?
O que faço eu, crianças? Fecho o botequim, coloco as cadeiras pra cima e acabo com esse blog, amarrando os meus dedos com esparadrapo todas as manhãs? Mas e os meus cinco fiéis leitores?
Mandem sugestões. Podemos inventar alguns códigos, podemos não inventar nada e mudar o nome dos personagens principais, podemos contratar um advogado, ou podemos continuar a encher lingüiça aqui até que os livros estejam prontos e possam ser divulgados. Não, isso nem vocês cinco agüentariam. Seria uma overdose de Índia, de yoga, de filosofias baratas, de poesias suspeitas.
Também poderíamos contar meias histórias. Posso contar, por exemplo, que um dos livros é uma biografia de um militar que, descrente da instituição, decidiu contar seus bastidores antes de mudar de vida (e de país, espero).
E dá para dizer que o outro livro é de uma pessoa importante no meio da moda. Um gentleman de Ipanema. Não posso contar o conteúdo das entrevistas, mas posso contar do cenário em que elas se dão. É num apartamento lindo, enorme, de andar inteiro e de olho no mar, daqueles que dão matérias memoráveis da Casa Vogue ou Casa Claúdia. Na minha primeira visita ao apartamento, fui recebida por um mordomo, que me ofereceu água e me mostrou um bowl recheado de balinhas e chocolates. Entrevista encerrada, ele foi orientado a me acompanhar até a portaria e pedir um táxi. “De cooperativa, não pega qualquer um, não”, disse o entrevistado gentleman.
Eu não estava de carro, é verdade, mas não ia voltar pra casa de táxi. E o motivo devia ser o mesmo pelo qual não tenho um mordomo. Mas quando um mordomo eficiente recebe a ordem de te colocar num táxi, você não tem qualquer alternativa. Então fui de Ipanema até o Leblon de táxi, parei para tomar um café, tirei o sapato de cristal e rumei para o ponto de ônibus do metrô que me levaria até o faroeste.
Isso é ser uma escritora freelancer.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Feliz Aniversário



Na terça passada este blog que vos fala completou um aninho. Ele nasceu graças ao livro da Ana e nasceu, justamente, com a missão de divulgá-lo. Mas logo cada um foi para um lado: o livro da Ana se divulgou sozinho e o blog provou da cachaça que é ser um blog.
Fazer blog é muito bom. Serve para exorcizar fantasmas e fumaças negras, organizar um pouco a vida, encontrar pessoas que não se via há tempos e, principalmente, experimentar textos usando pobres leitores anônimos de cobaias. E o melhor de tudo é que, como quase ninguém comenta ou critica (o que não quer dizer que ninguém lê, me diz o Google Analytics), você tem a ligeira sensação de que todo mundo gostou. Não dizem que quem cala consente?
Sim, o blogueiro se torna algo narcisista, mas faz parte. Todo blogueiro começa olhando para o próprio umbigo. “Escreva sobre sua aldeia e serás universal”, escreveu Tolstoi, que não teve tempo de saber o que é um blog. Já Andrew Keen, que acaba de lançar O culto ao amador, acha a profusão de umbigos virtuais muito perigosa para a cultura. Bem, eu não me encaixaria, segundo ele, na categoria de amadores, já que sou jornalista e tenho livros publicados. Mas nem por isso me sinto mais capacitada para fazer um blog. Tenho lido blogs interessantíssimos por aí de gente amadora no mundo das letras. E tenho lido muita coisa ruim também, assim como acontece quando dou uma olhada nas livrarias. Poupemos portanto os blogs, o Literal e até a Wikipedia.
De certa forma, fazer blog também é fazer uma social. Nesse ano de mais de 70 posts que passou, entrei em contato com uma colega antiga de faculdade. Numa troca inocente de emails em que ela pedia votos para um vídeo feito pelo filhinho dela e inscrito num concurso (mãe é mãe), ela viu meu blog no pé do email e mergulhou fundo. Leu todos (todos!) os posts que eu havia escrito até então. Quando já devia estar tonta de tanto moinho nas ventas, me escreveu flores dizendo que ficara muito feliz de ver tudo o que eu andava fazendo. Retomamos o contato de maneira muito tímida, trocando emails apenas, mas para a eremita aqui, que passa dias inteiros falando com um papagaio, que sente uma súbita felicidade quando percebe que precisa ir à padaria ou à farmácia e que dá pulinhos quando vai ao cinema durante a semana, acreditem, já é o máximo.
Também recebi comentários de pessoas desconhecidas, de outros estados até, e acabei de dar à minha sogra o prêmio de maior divulgadora do blog. A bela estatueta da Casa do Moinho está na sua estante. Sim, a Célia que comenta semana sim semana também é minha sogra, pronto, falei. Porque blog também é feito de família, meninos. O meu site, por exemplo, linkado aqui, foi todinho feito pelo meu marido, que pra isso estudou html e tudo. Home made mesmo. Agora ele está desatualizado, é claro (não o marido, o site), porque o marido viu como é chato fazer isso tudo e saiu de fininho. Homens. Mas logo, logo, se as vacas engordarem um pouquinho mais, contrato algum webdesigner. Há!
Como disse o guru McLuhan, toda tecnologia é uma extensão do corpo humano. Para ele o computador seria uma extensão de nossas sinapses nervosas mas, pra mim, fazer blog é ainda mais: é ganhar braços mais compridos e passos mais largos, o que melhora a velocidade e o fôlego daqueles textinhos que ficam ali, no cantinho, coçando o cérebro. De certa forma, o blog é uma aeróbica para as tais sinopses. Melhor que correr na esteira, acho. Mas continuo me obrigando a cansar o corpitcho, é claro, junto com o namastê que não posso faltar porque pra recuperar o pique é difícil, crianças, é difícil. O corpo dói e a cabeça não para de reclamar. “Termina com esse alongamento torturante, sai dessa postura impossível e vai escrever blog que é bem mais fácil, minha filha”, ela diz. Ô luta.
E as inscrições para o maior divulgador do umbigo, quer dizer, do blog de 2009 já estão abertas. Andrew Keen, tremei! Participem! Feliz um ano!

Sim, vocês cinco, mais atentos, também sabem que hoje é o meu aniversário. Hein? Quantos anos? Tsc tsc tsc. Essa pergunta não se faz, meninos.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Peraí que ainda não acabou

Então Duryodhana disse:
“Escute. Os livros são todos diferentes; os homens discutem e não chegam a lugar nenhum; e a Verdade está escondida em cavernas. Mas eu escutei a seguinte história:
No início dos tempos os homens viviam no ar e se movimentavam sem o menor esforço. A Terra, então, era feita de mel, doce e delicioso e, aos poucos, os homens desceram até ela para provar seu gosto. Apesar de não precisarem de comida para sobreviver, eles tomaram mais do que uma prova e logo ficaram muito pesados para voar. As asas caíram de seus corpos, a Terra começou a secar e produzir sementes, e as chuvas começaram a cair.
Então o último homem não podia mais voar. E apareceram as mulheres – mas nós as chamávamos de homens, assim como nos chamamos, eu e você. E aquelas que já haviam voado não mudaram. Mas elas começaram a desejar os homens, e, depois, a carregar seus filhos. Elas não mudaram desde então, e hoje são, para nós, mulheres.
Todos eram imortais. A Terra não podia mais agüentar tanto peso. Brahma ouviu seus lamentos e começou a pensar na total destruição das suas criaturas. Mas ele disse, “Eu não sei como!”. Sempre havia mais e mais pessoas vivendo na Terra. E na sua raiva, Brahma incendiou o paraíso, o céu e a Terra.
“Esse é o caminho”, pensou Brahma.
Mas Shiva, o grande deus cujo terceiro olho pode destruir o Universo, caiu aos pés de Brahma e disse: “Tenha misericórdia, não destrua o que você mesmo criou.”
“Eu não tenho compaixão”, respondeu Brahma. “Eu não tenho a Graça”.
“Se não tivesse eu jamais teria vindo até você”, disse Shiva. “Tudo o que lhe pertence está tomado pelo fogo. Olhe para as coisas vivas de novo de outra maneira.”
“A Terra me procurou em agonia”, falou Brahma. “Eu não encontrei a maneira de ajudá-la e fiquei com raiva. Eu disse “Minha linda, eu já sei porque você chora, mas para atender esse seu desejo eu não tenho nada!”. E ela me deu as costas, pesada e torta.
“Você vai transformá-la em cinzas”, disse Shiva.
Então Brahma disse “Senhor dos visitantes da noite, eu retiro a minha raiva.Vá, eu tenho uma grande dúvida, mas vou guardar o fogo comigo.”
Quando Brahma o fez, surgiu das portas dos seus seis sentidos uma mulher de olhos vermelhos e pele bronzeada, brilhantes em seus brincos e pulseiras. Sorrindo, olhou para Brahma e Shiva e seguiu andando em direção ao Sul. Brahma a chamou: “Espere, Morte. Mate todas as criaturas, incluindo idiotas e padres.”
“Não!”, ela respondeu, correndo e chorando enquanto se escondia.
Mas Brahma a encontrou e disse “Mas ninguém vai considerar que você cometeu uma falta, porque trata-se de um pedido meu. Morte, só as criaturas vivas morrerão.”
“Não”, ela disse. “Isso é cruel. Vá embora.”
Assim Brahma a deixou e não falou com ninguém, sorrindo entre os mundos sem raiva. A Morte vagou pela Terra, sem tirar uma só vida, por cem trilhões, duzentos e setenta e sete bilhões e oitocentos mil anos. Então Brahma chegou até ela e disse “Morte, eu não a vi nem por um momento. O que você anda fazendo?”
“Não me chame de Morte!”, ela respondeu. “Eu nunca vou matar por você.”
Brahma olhou para aquela atraente mulher. “Eu vou fazê-los iguais. Você não terá que levá-los, nem homens nem deuses nem demônios. Eu vou criar rancor e raiva e maldade e vergonha e ciúme e paixão. Eu vou fazê-los desse jeito e daquele jeito. Não faça nada – todos virão até você, cedo ou tarde. Não há nada a fazer, nada a parar de fazer, para você ou para eles. Mas os receba bem quando for a hora. Você não tem nada mais a dizer, eles irão se matar sozinhos. E apenas os estúpidos vão chorar sobre o que ninguém pode evitar.”
E assim Shiva começou a sua dança, já que, até então, apesar de ter levantado seu pé, ele não havia podido pisá-lo de novo no chão.

Moral da história, crianças: homens e mulheres são iguais, a gula é sempre um perigo, a gravidade existe, os deuses também tem dúvidas e rompantes de raiva e William Buck é um gênio que recebeu sem rancor a visita da Morte aos 37 anos, e por isso não pôde trabalhar em outros textos indianos como o Harivamsa, o que é uma pena. Também não pôde corrigir essa minha tradução, o que é outra grande pena.
Quando Shiva pisou de novo no chão, a Terra começou a tremer e, aos pouquinhos, se destruir. Pra isso foi preciso apenas deixar os homens agirem como homens. Mas depois de toda destruição tem um nascimento, diz o grande épico, e como ninguém pode voltar mesmo, o negócio é ir em frente.
Aliás, por falar em ir em frente, com perdão adiantado pelo trocadilho, li nesse livro uma expressão deliciosa e que dá a dimensão do talento de Buck: “gritando e chorando o suficiente para fazer o sangue dar marcha-ré.” Estou contando isso porque, se eu um dia vier a usá-la, todo mundo vai saber que era um plágio anunciado. Ou melhor, uma homenagem. Há!

Brahma disse: “Bem, depois de ouvir dez mil explicações, o estúpido não fica mais esperto. Mas um homem inteligente precisa de apenas duas mil e quinhentas.”

Poupem os deuses.