quinta-feira, 2 de abril de 2009

Peraí que ainda não acabou

Então Duryodhana disse:
“Escute. Os livros são todos diferentes; os homens discutem e não chegam a lugar nenhum; e a Verdade está escondida em cavernas. Mas eu escutei a seguinte história:
No início dos tempos os homens viviam no ar e se movimentavam sem o menor esforço. A Terra, então, era feita de mel, doce e delicioso e, aos poucos, os homens desceram até ela para provar seu gosto. Apesar de não precisarem de comida para sobreviver, eles tomaram mais do que uma prova e logo ficaram muito pesados para voar. As asas caíram de seus corpos, a Terra começou a secar e produzir sementes, e as chuvas começaram a cair.
Então o último homem não podia mais voar. E apareceram as mulheres – mas nós as chamávamos de homens, assim como nos chamamos, eu e você. E aquelas que já haviam voado não mudaram. Mas elas começaram a desejar os homens, e, depois, a carregar seus filhos. Elas não mudaram desde então, e hoje são, para nós, mulheres.
Todos eram imortais. A Terra não podia mais agüentar tanto peso. Brahma ouviu seus lamentos e começou a pensar na total destruição das suas criaturas. Mas ele disse, “Eu não sei como!”. Sempre havia mais e mais pessoas vivendo na Terra. E na sua raiva, Brahma incendiou o paraíso, o céu e a Terra.
“Esse é o caminho”, pensou Brahma.
Mas Shiva, o grande deus cujo terceiro olho pode destruir o Universo, caiu aos pés de Brahma e disse: “Tenha misericórdia, não destrua o que você mesmo criou.”
“Eu não tenho compaixão”, respondeu Brahma. “Eu não tenho a Graça”.
“Se não tivesse eu jamais teria vindo até você”, disse Shiva. “Tudo o que lhe pertence está tomado pelo fogo. Olhe para as coisas vivas de novo de outra maneira.”
“A Terra me procurou em agonia”, falou Brahma. “Eu não encontrei a maneira de ajudá-la e fiquei com raiva. Eu disse “Minha linda, eu já sei porque você chora, mas para atender esse seu desejo eu não tenho nada!”. E ela me deu as costas, pesada e torta.
“Você vai transformá-la em cinzas”, disse Shiva.
Então Brahma disse “Senhor dos visitantes da noite, eu retiro a minha raiva.Vá, eu tenho uma grande dúvida, mas vou guardar o fogo comigo.”
Quando Brahma o fez, surgiu das portas dos seus seis sentidos uma mulher de olhos vermelhos e pele bronzeada, brilhantes em seus brincos e pulseiras. Sorrindo, olhou para Brahma e Shiva e seguiu andando em direção ao Sul. Brahma a chamou: “Espere, Morte. Mate todas as criaturas, incluindo idiotas e padres.”
“Não!”, ela respondeu, correndo e chorando enquanto se escondia.
Mas Brahma a encontrou e disse “Mas ninguém vai considerar que você cometeu uma falta, porque trata-se de um pedido meu. Morte, só as criaturas vivas morrerão.”
“Não”, ela disse. “Isso é cruel. Vá embora.”
Assim Brahma a deixou e não falou com ninguém, sorrindo entre os mundos sem raiva. A Morte vagou pela Terra, sem tirar uma só vida, por cem trilhões, duzentos e setenta e sete bilhões e oitocentos mil anos. Então Brahma chegou até ela e disse “Morte, eu não a vi nem por um momento. O que você anda fazendo?”
“Não me chame de Morte!”, ela respondeu. “Eu nunca vou matar por você.”
Brahma olhou para aquela atraente mulher. “Eu vou fazê-los iguais. Você não terá que levá-los, nem homens nem deuses nem demônios. Eu vou criar rancor e raiva e maldade e vergonha e ciúme e paixão. Eu vou fazê-los desse jeito e daquele jeito. Não faça nada – todos virão até você, cedo ou tarde. Não há nada a fazer, nada a parar de fazer, para você ou para eles. Mas os receba bem quando for a hora. Você não tem nada mais a dizer, eles irão se matar sozinhos. E apenas os estúpidos vão chorar sobre o que ninguém pode evitar.”
E assim Shiva começou a sua dança, já que, até então, apesar de ter levantado seu pé, ele não havia podido pisá-lo de novo no chão.

Moral da história, crianças: homens e mulheres são iguais, a gula é sempre um perigo, a gravidade existe, os deuses também tem dúvidas e rompantes de raiva e William Buck é um gênio que recebeu sem rancor a visita da Morte aos 37 anos, e por isso não pôde trabalhar em outros textos indianos como o Harivamsa, o que é uma pena. Também não pôde corrigir essa minha tradução, o que é outra grande pena.
Quando Shiva pisou de novo no chão, a Terra começou a tremer e, aos pouquinhos, se destruir. Pra isso foi preciso apenas deixar os homens agirem como homens. Mas depois de toda destruição tem um nascimento, diz o grande épico, e como ninguém pode voltar mesmo, o negócio é ir em frente.
Aliás, por falar em ir em frente, com perdão adiantado pelo trocadilho, li nesse livro uma expressão deliciosa e que dá a dimensão do talento de Buck: “gritando e chorando o suficiente para fazer o sangue dar marcha-ré.” Estou contando isso porque, se eu um dia vier a usá-la, todo mundo vai saber que era um plágio anunciado. Ou melhor, uma homenagem. Há!

Brahma disse: “Bem, depois de ouvir dez mil explicações, o estúpido não fica mais esperto. Mas um homem inteligente precisa de apenas duas mil e quinhentas.”

Poupem os deuses.

Nenhum comentário: