quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Escarafunchos ao sol

Foi ali, no Pepê. Depois de uma bela caminhada, entre uma mordida no pastel e um gole de água de coco. Entre um pombo atento às migalhas da mesa de madeira vazia em frente, um vendedor de bijuterias à direita, um quarteto de adolescentes emudecidas pelo tédio à esquerda, mar, areia e vôlei de praia como testemunhas. Ali, num instante, percebi o óbvio, o que costuma ser muito difícil.
Tive a certeza de que a vida é puro movimento, de que nada pára mesmo, de que estamos sempre em irritante e constante mudança. E então, por causa do filme da véspera, no qual uma das personagens era fotógrafa (sim, o filme novo do Woody Allen), lembrei do curso de fotografia que fiz na adolescência. Eu adorava as minhas fotos em PB e o conforto do escurinho do laboratório. Enquanto a foto dançava ainda diáfana no líquido mágico, a sensação era de estar trazendo o passado para o presente. Ele vinha devagar, meio borrado, e aos poucos ia se firmando no papel. Quando a imagem se revelava, estava lá, nítido, o grande lance: o momento vivido de volta, não imortal, mas vivo, o que vale muito mais. Era uma maneira de segurar a onda, de organizar o caos, de mentir para si mesmo que o tempo não é assim tão arredio, que ele se presta a uma moldura vez ou outra e que, por isso, é de certa forma controlável. Um alívio no lusco-fusco da angústia. Bobinha.
Os anos se passaram, o tempo rugiu, as imagens amarelaram e deixei a fotografia pra lá. Se vocês querem saber, hoje mal sei usar a máquina digital do meu marido. Também larguei o violão, o sapateado e qualquer outra via de manifestação artística. Escolhi o jornalismo e quase larguei o texto também, mas por algum motivo ele, o texto, foi mais forte do que eu. Foi só e tanto o que me restou. E trouxe com ele outras angústias, ui, as angústias de quem escreve e acha que não merece respirar nem mais um minuto se não emplacar logo uma obra-prima, se não encontrar um Tema, se não vislumbrar o Grande Caminho Criativo. Qual a razão de tanto trabalho, afinal, se não chegarmos lá?
Então engoli o pastel e o Grande Romance ou Coisa Parecida desceu junto. Entendi tudo. Eu, escritora de aluguel com muito orgulho, poderia também dizer que sou uma espécie de fotógrafa de textos. Eu fotografo histórias, registro seus melhores e piores momentos, revelo cenas marcantes, emolduro memórias. Elas chegam pra mim como grandes pretextos, e tudo que preciso fazer é clicá-las. E eu adoro clicá-las. É como se o tempo me desse uma colher de chá de novo. É como se o destino desse uma trégua para o arbítrio, me levasse pela mão até o laboratório e me ajudasse a pendurar, uma a uma, as fotos dos outros que também contam a minha vida, de certa forma. Acho que esse é o meu Tema, esse é o meu Grande Caminho que também poderia, facilmente, ser chamado de Caminhada no Calçadão. Tem menos glamour, eu sei, mas o que vocês queriam de alguém que cresceu praticamente no mato, andando descalça na lama e brincando com besouros e formigas?
Quando o pombo voou, as adolescentes falaram e o cara das bijuterias seguiu seu Rumo, saí do transe e prometi para mim mesma que vou caminhar mais vezes. E talvez eu também volte a sapatear qualquer dia desses.
O violão não dá. Eu era desafinada de dar dó.

Um comentário:

Larissa disse...

Carla,
Amei o teu texto, o teu blog e o teu site.

Abraços
Larissa Scherer