quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Sorria, tem poesia na Barra

Ex-moradora de Botafogo e ex-dependente química das flores e frutas da Cobal do Humaitá, fui daquelas que sempre falou mal da Barra. Ai que horror era atravessar o túnel, ai que medonhos os prédios, que cafonice os nomes dos shoppings etc. Quatro anos atrás, o cuspe caiu na cara. Decidi juntar as escovas de dentes e fui parar na Barra por motivos de força maior, leia-se não pagar aluguel. Para amenizar o fato eu dizia “Ah, mas é no Jardim Oceânico, que não tem nada a ver com o bairro, é quase como se a gente não morasse lá”. Eu adorava poder dizer aos amigos que, à tardinha, passava na minha rua uma carroça cheia de milho verde, bananas e aipim macio. “Tem um clima de cidade do interior, gente, é uma delícia!”. (Isso eu continuo achando, de verdade).
É verdade também que o tempo passa e as coisas mudam. Nesta segunda, aceitei o convite da Ana para freqüentar um evento do Corujão da Poesia, projeto da Universidade Salgado de Oliveira que começou há três anos na Letras & Expressões do Leblon e, recentemente, alcançou a livraria Diversos, ao lado do Balada Mix, bem aqui na Erico Veríssimo. A idéia, que vara a madrugada, é manter o microfone aberto a poetas, músicos, atores, escritores. A Ana foi uma das primeiras a ajudar o grupo, quando eles ainda precisavam de patrocínio. Hoje, projeto crescido, nem aceitam mais dinheiro, só voluntários. De lá pra cá, em parceria com ongs, escolas e outras instituições, também criaram as Bibliotecas Solidárias. Já são mais de vinte bibliotecas beneficiadas com a doação de livros novos e usados levantada pelo projeto. Nessa chegaram livros em penitenciárias, hospitais e morros como o do Alemão.
Naquele dia eu ainda não sabia que o motivo era tão nobre, só sabia que não tiraria o carro da garagem. Fui a pé até a livraria. A pé, gente, a pé. Que felicidade! Que sensação boa essa, de ter alguma vida cultural na esquina. É bela a vida na Barra, enfim. Estavam lá Raul Gazola, Nelson Freitas e outros artistas que se revezavam no palco que não era palco, recitando e cantando poetas como Drumond. João, organizador do evento, agradeceu a nossa presença falando da bela menina e, trin tron, vendeu-se mais um livrinho. Mas o que valeu mesmo foi ver o clima democrático da calçada. Qualquer um podia levantar, pegar o microfone, falar qualquer penca de frases de gosto discutível e todo mundo aplaudia, tudo pela liberdade de expressão e pela formação de leitores.
Gostei. Eu até bebi um pouquinho, mas não tive coragem de falar a minha frase predileta. Microfone na mão eu diria, para uma dúzia de espectadores confusos: “Cria o teu germe em silêncio. Eu também estou mudo e aguardo.” Ué, o que posso fazer se as esquisitices da Hilda Hist grudam em mim? Qualquer dia visto uma peruca, um chapéu, óculos escuros, bebo mais algumas taças e boto isso pra fora. É profundo, crianças, é profundo.

http://www.corujaodapoesiaedamusica.blogspot.com/

E agora é sério (mentira, antes também era):

Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante

Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.
Por que te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra ariana

Não essa que te louva

A cada verso
Mas outra

Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,
É que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente

E por isso talvez
Te aborreças de mim.

Hilda Hist

“Ode descontínua e remota para flauta e eboé. De Ariana para Dionísio”, parte IV, in Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. São Paulo: Globo, 2003.

Nenhum comentário: