terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Salvem o Jotalhão



Mamãe mexeu no meu armário. É sempre um perigo quando as mães mexem no nosso armário. Mas estou falando de um armário de quarto antigo, que visito de vez em quando sem prestar muita atenção nas recordações infantis. Eu vinha protelando a investigação desse móvel porque precisaria de dias inteiros para viajar por aquele mundo de papéis de cartas, agendas gordas de tanta colagem e cartões, cartinhas, promessas de amor eterno e bilhetinhos assim: “Marcelo, você quer casar comigo?” A pergunta vinha acompanhada de um quadradinho onde se poderia marcar um X caso a resposta fosse Sim e outro quadradinho para o Não. Embaixo deles, uma linha pontilhada guardava espaço para a assinatura do pretendente. Como posso mexer em prateleiras dessas sem tempo para parar tudo, fechar os olhos e relembrar todas as sensações que esse tempo mágico trazia?
Pois é. Então a minha mãe mexeu por mim. O objetivo era achar um caderno de poesias antigo para mostrar ao meu sobrinho, que arrisca agora seus primeiros versos. Na minha memória, a capa do caderno era do Horácio, aquele dinossauro verde. Eis que, na verdade, a capa é do Jotalhão. Ok, um elefante não tem nada a ver com um dinossauro, mas o que importa é que os dois são verdes. A minha memória é cromática, fazer o quê?
Descobri várias coisas relendo esse caderno. Uma delas é que eu escrevia até direitinho para uma pirralha de dez, onze anos, que só entrou no colégio aos seis porque queria aprender a escrever. Brincar eu podia brincar em casa, eu dizia, e corria para os meus patos, pintinhos, porquinhos da índia, coelhos. Mas descobri também que eu era uma pirralha bem atormentada. Vejamos:

Eu vi, sou testemunha.
Lá no mar, junto com a gaivota barulhenta, que sobrevoava as ondas que batiam nas pedras.
Eu vi, sou testemunha.
Um homem andava pela areia arrastando as correntes de um barco, encontrado ali não se sabe como. Gastando todos os seus esforços para consertá-lo, a fim de fugir da guerra que ali haveria.
Mas de repente um avião, mais para um furacão, acabou com tudo. E esse homem morreu junto com as suas esperanças.
E as lembranças do passado, agora, trituradas pela guerra.
Eu vi, sou testemunha.

1986.

Das duas uma: ou eu era muito angustiada ou meu irmão andava vendo muitos filmes de guerra.
Ou ainda a gente cresce e aprende a esconder debaixo do tapete as preocupações que realmente interessam.


Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa! Um gênio desde pequenina!

Mas quero saber quem é Marcelo?
Qual quadradinho ele marcou???

Beijos,
Celia