segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O tigre e o macaco

A conversa, a princípio, parecia amena. Os dois já haviam passado dos trinta: o cara era forte mas sem jeito de armário prensado. O cabelo, grosso e meio grisalho, estava preso numa espécie de rabo-de-cavalo baixo e a barba era daquelas quase selvagens, aparada apenas no bigode e nas partes mais altas das bochechas. Eu sei, deve existir um nome para esse estilo, mas não tenho nenhum barbeiro por perto pra perguntar e o meu papagaio não parece entender do assunto. Dito assim parece que o homem era um tanto, como dizer, diferente, mas as feições do rosto eram delicadas e os olhos agudos, o que, junto com uma camisa social azul, equilibrava toda a figura, dependendo do que vocês entendem por equilíbrio. Ela, um pouco acima da balança para os padrões anoréxicos atuais, usava calça justa de tecido sintético, blusa branca com borboletas douradas, sandálias douradas de saltos altíssimos e eu poderia dizer que seu cabelo também era dourado, mas a verdade é que ele estava mais para o branco, ou aquela cor de farmácia que chamamos de louro por, sei lá, piedade daltônica. Não pude ver direito seu rosto, mas parecia bonito e maquiado.
Era um segundo, quem sabe um terceiro encontro do casal. Pareciam estar se dando bem. Até que Jesus sentou à mesa. “Por que, você não acredita em Jesus?”, ela perguntou rindo, assim como quem pergunta se alguém duvida que o céu é azul.
O clima, pude sentir a uma mesa de distância, ficou tenso. Muito tenso. “Qual Jesus, o que escravizou todo o ocidente?”, perguntou, já impaciente, o barbudão. “Não, o Jesus que só fez coisa boa pra todos, foi crucificado e ressuscitou três dias depois.”
Ui. A esta altura tive que desviar o olhar, porque estava claro que eu parara de tomar o meu chá de camomila para ouvir a discussão. Não pude continuar a minha leitura labial, mas ouvi algo como “Ah, pelo amor de Deus”, do outro lado. A loura das borboletas, ignorando a impaciência do cabeludo, começou a pregação. Disse que o levaria para a igreja dela, que ele podia até ficar bravo agora mas que, no dia em que tivesse Deus no coração, ele a agradeceria. “Eu acredito em Deus e no Espírito Santo, é só isso, é muito simples”, ela dizia, como quem ensina uma receita de bolo.
Impasse. Foi criada, ali naquela pequena mesa, uma extensa e incontornável faixa de Gaza. “Não dá, já vi que não dá, você acabou de eliminar todas as chances de a gente dar certo algum dia, não tem solução”, disse o barbudo, pedindo a conta para o garçom. O assunto, pra ele, estava encerradíssimo. “A gente podia fazer várias coisas juntos, mas já era”, disse, resoluto.
As borboletas douradas se assustaram. E se arrependeram. “Você vai brigar comigo por causa de religião?”, ela disse, e não pude ver porque ela estava de costas, mas tive a impressão de que seus lábios estavam trêmulos. “Não, não estou brigando, você fica com Jesus e a gente termina por aqui, numa boa”, ele disse, se levantando da mesa. Ainda ofereceu uma carona, mas deu as costas depois de vários beicinhos e súplicas para que ele sentasse de novo. E aceitasse Jesus e topasse ir à igreja, de preferência.
As borboletas ficaram sozinhas, encarando um copo de mate, tomando coragem para voar dali. Abriram a bolsa várias vezes, quebraram uma cartelinha de chicletes, colocaram dois na boca, retocaram o batom e, em cima do salto, saíram do Café seguras de si. Ou ao menos era o que parecia.

Depois dessa cena, que parou o ambiente, não conseguia parar de pensar no Aravind Adiga. Se ele estivesse aqui, provavelmente escreveria, depois disso:
Há!

The White Tiger é, de certa forma, um libelo contra a hipocrisia religiosa e espiritual. Ao contar a história de um servo indiano de casta baixa, Adiga esfarela todas as metáforas indianas ligadas à iluminação que, ao mesmo tempo em que movem milhares de pessoas à Índia todos os anos, também fazem, de certa forma, com que milhões de locais sejam escravizados, vivendo única e exclusivamente para o enriquecimento dos estrangeiros que tomam o país. Mas o que se poderia esperar, diz Adiga, de um país que venera o Hanumah, o macaco que virou mais um dos mais de 33 milhões (!) de deuses hindus exatamente pela dedicação servil dedicada a seu mestre, Rama?
O White Tiger, tigre branco selvagem e raro, único em sua geração, não nomeia o protagonista à toa. É ele, o tigre, que consegue romper as grades e ganhar, com critérios éticos pra lá de discutíveis (mas isso é outra história), a sua chance de, finalmente, olhar o mundo com os próprios olhos. É aí que ele decide o que parece ou não ser a tal da verdade.
Assim como um servo indiano, que aceita entregar sua vida a um mestre por pura falta de opção econômica mas também por doutrinação, a loura das borboletas também me pareceu presa. Não a uma casta, mas à intolerância e à incapacidade de olhar para os lados. Seus deuses são só dois, o que poupa um pouco do trabalho, mas ela, como Hanumah, não sabe viver fora do próprio templo. E acredita, pia e um tanto arrogantemente, que está fazendo um grande bem ao outro quando se dedica a convertê-lo. Há!
Um pouco de filosofia, então, para amainar o clima: como diria Descartes, a própria idéia de Deus que há dentro de nós é uma prova lógica de que ele existe. Afinal nós, imperfeitos, jamais seríamos capazes de desenvolver a idéia da perfeição. É por isso que, segundo o filósofo, Deus já está carimbado no nosso cérebro. E, em alguns, também no coração. Mas isso não é ele quem diz.
Simples, não? Então eu lhes pergunto, meninos, por que tanta pregação? Por que tantos códigos, condutas, regulamentos, agregações? Por que tantos telhados que desmoronam matando inocentes enquanto seus donos fazem shopping na Florida?
Também não sei dizer, ora, quem sou eu. Só sei que The White Tiger, por vários outros motivos, é um dos melhores livros que já li. Tirando os da Hilda Hist e o Salinger, é claro.
Se cuidem. Os deuses andam cansados.

2 comentários:

Anônimo disse...

amiga!! Agora, eu tb tenho um blog! E, olha, comecei a ler "Tigre Branco"... Vou deixar minhas impressões quando acabar!! Me visita, tá? bjs!!

http://grabacupoftea.wordpress.com/

Anônimo disse...

Amiga, quero fazer um especialzinho sobre vc e a Ana Karina! Seu livro marcou tanto a minha vida... Aliás, outro dia, comecei a ler o "Por Trás da Entrevista". Foi um belíssimo trabalho e me fez entender mto mais dos jornalistas... Bjs!!!