sexta-feira, 9 de abril de 2010

Aqui ou em Paraty





Um dos livros que estou produzindo, vocês seis já sabem, é sobre a Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, escola de formação de oficiais do exército. É a história de um tenente que passou por todas as agruras do curso conhecido por, entre outras coisas como causar a morte de alguns cadetes durante exercícios sobre-humanos, ter inspirado o treinamento do Bope. Sem as aulas de tortura, diga-se.

Muito bem. Quando conversei com o biografado em questão, meus dentes caninos de jornalista cresceram e eu queria sangue. Queria publicar todos os podres de bastidores, todas as atrocidades cometidas nos trotes feitos com os “bichos”, todos os sofrimentos impostos aos pobres dos cadetes. O biografado, no entanto, muito metódico é claro, já tinha um sumário pronto. Sabia exatamente o que queria contar – hello, crianças, o cara é um militar.

Lembrei então que aquele era um trabalho de encomenda, olhei a minha conta bancária, respirei fundo e fiz o que faço de melhor: escutei. Escutei, escutei, escutei e escutei mais um pouquinho. Quando senti que os ouvidos já estavam mais do que atentos, me permiti afiar as perguntas e os questionamentos. E hoje, depoimentos praticamente prontos nas mãos, fico rindo sozinha relendo as entrevistas. São longas conversas de um ET tentando convencer uma Alien orelhuda de que o seu mundo é sim viável, ao menos na teoria. Na prática a teoria é outra, mas isso não tira o caráter nobre da disciplina, dos valores morais e éticos que sim, existem no mundo onde regras são respeitadas.

“Na sociedade de hoje, quem faz o certo é visto como bobão”, diz o tenente desiludido. E ele não deixa de ter razão. Não à toa, o mundo da Aman é muitas vezes definido como uma bolha, ambiente excluído da “vida lá fora”, espaço onde as crenças têm fronteiras: quando elas escorregam para fora dos belos portões da academia de Rezende, batem de frente com um mundo tão inóspito quanto o território inimigo. “Então você se choca muito com a realidade”, explica o tenente.

A boa e velha divisão do mundo de lá e do mundo de cá, etnocentrismo radical e inevitável. Nem em Paraty, onde passei a semana santa, consegui desviar desse desfiladeiro intrínseco à humanidade. Estava eu curtindo o centro histórico, tropeçando de cinco em cinco minutos no calçamento pé-de- moleque, quando me deparei com o sujeito aí das fotos. Calça de juta, corrente na mão, o escravo encenava um bem construído monólogo em cima de uma pedra. Explicava aos turistas incautos que aquela era uma cidade feita com o suor dos escravos, inclusive crianças escravas, e que seus casarões e igrejas trazem misteriosos símbolos maçônicos. Contou que a cidade, fundada em 1667 em torno da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, aquela mesma que crescia atrás de suas costas doídas, não possuía rede de esgoto, sendo periodicamente “lavada” pela água do mar quando a maré subia e alagava as ruas. Daí todos os sobrados serem construídos com mais de um metro de distância em relação ao solo. Quando a maré subia, o centro se tornava uma Veneza dos trópicos e os caiçaras atravessavam as ruas de canoa.E com os narizes tampados, provavelmente.

Depois de contar também a história da igreja de Santa Rita e lembrar de toda pedraria e todo o ouro que passavam pelo porto de Paraty no século XVIII, o escravo terminou sua apresentação dizendo já estar há um ano e cento e cinqüenta dias naquela pedra e que a cultura afro-brasileira, para ser verdadeiramente livre, precisa ainda aprender a lidar com o passado. Logo em seguida, sorriso largo, começou a atender os pedidos de turistas interessados em tirar fotos com ele. “Já são cerca de cem mil fotos pelo mundo”, ele dizia, simpático. Mas quando uma mulher tentou dirigir a foto, dizendo que ele não precisava não colocar as correntes ao redor dos punhos dela, tascou logo: “Aqui quem manda sou eu, sinhazinha”.

Anderson Mota da Silva tem 28 anos e é, nas suas corretas e afiadas palavras, “a primeira estátua viva de escravo no Brasil”. Decidiu arcar com o título depois de pesquisar as estátuas vivas já criadas até hoje e perceber que nenhuma delas era de um escravo. Então um dia se olhou de cima a baixo no espelho e decidiu: a estátua que faltava estava bem ali.

Tudo isso já seria muito interessante só que tem mais:
O que Anderson fazia antes de passar o chapéu de escravo moído? Anderson, pasmem, era sargento. Instrutor da Aman. “Aqueles cadetes sofreram muito na minha mão”, ele contou rindo. E largou um emprego tão seguro por que, Anderson? “Porque lá a gente fica muito afastado da realidade”.

Céus. Fui correndo beber uma caipirinha.

2 comentários:

Guillermo Aldaya disse...

O Anderson sabe o que faz. Vale a pena esperar a apresentação e conversar com ele. Fiz algumas fotos. Postei uma no meu blog. Obrigado pelo seu post.

Cor Ação Brasileiro disse...

Trabalho com turismo etnico e gostaria muito do contato do Anderson.Será que algum de vocês tem?Quem tiver por favor enviem pelo email marizecon@ig.com.br