quinta-feira, 10 de março de 2011

O filósofo Proust



"Porém mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para todas as pessoas, e de que cada um não tem mais que tomar conhecimento, como se tratasse de um livro de contabilidade ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos “ver uma pessoa que conhecemos” é em parte uma ação intelectual. Preenchemos a aparência física do ser que vemos com todas as noções que temos a seu respeito, e, para o aspecto global que nós representamos, tais noções certamente entram com a maior parte. Acabam por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir tão perfeitamente a linha do nariz, vêm de tal forma matizar a sonoridade da voz como esta fosse apenas um envoltório transparente, que, cada vez que vemos esse rosto e ouvimos essa voz, são essas as noções que reencontramos, que escutamos."


Sempre achei que Proust era tão filósofo quanto escritor, assim como sempre suspeitei que a filosofia passeia pela literatura muitas vezes com mais desenvoltura do que nas ditas ciências sociais. Está aí acima, num trechinho de No caminho de Swann, uma pequena prova. O escritor, com muito mais melodia e elegância, destrincha o conceito do “outro generalizado”, de Mead. De quebra, no mesmo parágrafo, desliza também pela sociologia e pelo conteúdo de A representação do eu na vida cotidiana, de Goffman, livrinho que a gente lê na faculdade e acha o máximo. Depois os anos tratam de mostrar que não é bem assim. Ou que outros explicam a mesma coisa de um jeito infinitamente melhor. Como Proust e seu Em busca do tempo perdido, que, dizia um amigo meu do mestrado, deve ser lido homeopaticamente, que é para a gente se deleitar e não perder nenhuma madeleine.
Uma a três páginas por dia, à noite, é uma boa prescrição. Não é preciso mais para dormir feliz e angustiado, surpreso e acalentado. No mínimo, para lembrar do tempo em que esperar o beijo de boa-noite da mãe era mesmo ato ambíguo, cheio de antecipação amorosa e solidão escura anunciada. Ou para aprender a gostar de filosofia.

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