sexta-feira, 23 de julho de 2010

Kant atropelado

Posso dizer que sou amiga da Cissa Guimarães. Durante dois anos fizemos parte de um grupo de estudos de filosofia e nos encontrávamos semanalmente para destrinchar Descartes, Bachelard, Kant, Aristóteles. Não sei como são os cursos convencionais de filosofia, mas sei que aquele foi especial. A turma, de apenas quatro pessoas espantadas com os loopings mentais causados pelas meditações metafísicas de Descartes, acabou criando um elo único, cumplicidade da boa de quem dava linha aos neurônios enquanto bebia goles de vinho em canecas (a sala era a de um consultório e o analista, também professor de filosofia, não tinha copos na copa – mas tinha canecas).

Por muitas vezes estendemos as cambalhotas paradigmáticas para o Diagonal, o Belmonte ou qualquer outro bar à espreita e aberto aos nossos sustos coletivos e solidários. A noite acabava tarde, com neurônios um tanto alcoolizados, mas feliz a toda prova. Era vida o que pulsava ali. Cheia de curiosidade pelo mundo, pelas pessoas, pela sociedade.

Por isso tudo, quando soube da morte do Rafael, o Rafa da Cissa, gelei. Não pude ir ao velório, chorei vendo as fotos pela internet e deixei umas flores na casa dela. Nada disso ajuda, é claro. Não há nada capaz de dissolver uma dor dessas, a gente logo pensa. Lembrei do povo indiano meio hare hare que estufa o peito para dizer assim: “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional”. Porra nenhuma. Dizem também os neoindianos que nenhuma emoção dura mais do que um dia e meio. É por isso que, na Índia, o velório é especialmente dramático e há inclusive pessoas incumbidas da tarefa de fazer os parentes chorarem, botando logo toda a tristeza pra fora numa espécie de catarse. Tudo para depois ficar só o tal do sofrimento opcional. Isso na casa deles.

Na nossa, terra sem lei como a deles, aliás, a coisa é mais embaixo.
Lendo as notícias sobre o atropelamento, foi inevitável lembrar das nossas aulas de filosofia.

Estudávamos Kant, tentando desbravar a Fundamentação da metafísica dos costumes. É onde Kant fala da moral. De como ela não é natural, de como precisa de leis e preceitos rígidos para funcionar. A gente pensa e sonha que a sociedade é regida por uma determinada moral, certo? Mentira. A moral não pode se apoiar na natureza humana, mas sim (e somente) na razão.

O que rege alguma coisa na sociedade, quando rege, são as leis. É para isso que elas existem, para que o homem viva de acordo com a razão, constrangido por ela, o que faz dele um ser humano e não um animal que baba e segue o seu instinto. É a razão, na verdade, quem nos permite a liberdade. Somos livres para agir moralmente.

Para Kant, viver moralmente é ser racional, sendo a parte pura da moral o dever. É o entendimento, o poder de pensar segundo regras, o que nos habilita a entender o mundo das coisas. Para ele era o Direito que podia melhorar a humanidade, não a ciência ou a tecnologia. E sim, a razão pode ainda pensar o sensível. Carne e osso pressupõem razão e liberdade. O que quer dizer que ser livre aqui é possível, só que dá um pouco mais de trabalho.

As leis servem para o bem comum, e justamente por isso limitam (aqui a idéia de limite tão valiosa em Kant, em todos os sentidos) as liberdades individuais. É em nome desse bem comum e da segurança conseqüente que aceitamos frear nossos instintos, nossos desejos, nossas veleidades. Mas a razão também é livre para contrariar a natureza e há sempre uma escolha anterior à vontade, que diz se a razão será ou não levada em conta. Ou o que chamam de livre arbítrio. E aí surge o conflito entre a ética e o desejo.

E então acontece que no Brasil, terra da paixão, da raça, do jeitinho, a lei só é considerada quando conveniente. Quando ela incomoda a vida, seja impedindo um determinado trajeto, a guarda de uma criança ou um lazer tão inocente como o skate, ela deixa de ser lei para ser um detalhe irritante.

Ser livre, então, não será agir em conformidade com a parcela moral do homem, mas sim seguir, cegamente, um desejo. E assim todos, infelizmente, farão tudo errado mais hora menos hora: o Rafael e seus amigos andarão de skate em local proibido; os guardas da CET Rio farão vista grossa; os cretinos idiotas babacas imbecis disputarão um pega; os policiais corruptos aceitarão dinheiro para fingirem que não viram um elefante rosa-choque piscante com a tromba destroçada.

Não sobrará uma só alma inocente. Bom, sempre tem alguém pronto a chamar os bombeiros. Mas esse vai chegar tarde. Como sempre chegam as leis.

Se Kant e outros filósofos fossem estudados a sério nas escolas, talvez o Brasil fosse bem diferente.

Força, Cissa.

3 comentários:

Anônimo disse...

Só você para transmitir tanta sensibilidade de maneira suave e gentil.
Por isso e mais, é que gosto tanto de você.
Celia

Unknown disse...

Falou tudo.

Wolfgang disse...

Carla, confesso que fiquei realmente emocionado com com o seu requiem. Você deveria mandá-lo para O Globo, merece ser publicado.
Bjs., pai