quinta-feira, 14 de julho de 2016
Naquele dia ele ia conseguir. Não passava daquele dia. Vinha se preparando há meses. Respirou fundo, sacou o celular do bolso, abriu a agenda telefônica. Bastava encostar no número ligeiramente, tão simples, tão rápido. Você consegue, pensou, nem precisa discar nada, é rápido como tirar um band-aid, você consegue.
Não conseguiu. Bateu taquicardia, suor frio, tremedeira. E se engasgasse? E se perdesse a voz ou, pior, ficasse com uma voz esganiçada de cantor de chuveiro? Ah, mas não, não podia desistir. Havia prometido a si mesmo que, se não ligasse naquele dia, jogaria o celular na privada. Escreveu essa promessa, até. Na página de notas do celular. Olhou para o espelho, disse Há! e ligou.
Fala Pedrão!
...
Alô?
...
Você tá aí, cara?
...
Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
...
Desliga aí, vou te ligar para ver se melhora a ligação.
Mauro, melhor amigo de Pedrão, amigo de infância, do peito mesmo, nunca mais conseguiu falar com ele. Recebeu uma mensagem no whatsapp, no entanto, onde Pedrão explicava estar pegado no trabalho, que no momento em que ligou viu que teria que desligar, que pô, saudade irmão, a vida tá corrida, como vai a Belinha? Vamos combinar um churrasco, vamos marcar aí.
Pedrão não recebeu resposta. Hoje vive corroído com a ideia de ter magoado o amigo de fé, irmão camarada, seu brother de sempre. Prometeu a si mesmo que escreveria uma mensagem para ele no inbox.
Depois dessa, Pedrão não falou com mais ninguém ao telefone. Acha íntimo demais. Falar ao telefone é uma invasão de intimidade que ninguém merece. Muito menos os amigos.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Tim-tim!
Acho importante ensinar boas maneiras. Comer de boca fechada, manejar bem os talheres, juntá-los depois no prato antes de limpar a boca e tirar delicadamente o guardanapo do colo. O problema é que ensinar isso a uma criança de três anos é difícil, porque pode ser difícil ensinar qualquer coisa a uma criança por mais de dez minutos. Ou segundos. Então a gente se diverte. Faz piquenique para servir os bonecos com maestria, colocando toalha bordada e um pratinho para cada um com uvas, bananas e morangos, ensina todo mundo a usar o guardanapo, convida o amigo do amigo e, pra comemorar a produção toda, faz tim-tim com os copos. Tim-tim!
Fazer tim-tim agradou muito. O pessoal todo, da Jessie à Cinderela, do Buzz ao Mickey, achou essa coisa de tim-tim muito divertida. Começamos a fazer tim-tim também de picolé, de maçãs, de milho cozido, de revistinha, de chave, de computador, de... língua. Ah, sim, é difícil ensinar que dar língua, o que é muito engraçado, deve ser feito só de mentirinha, em casa, com os pais. Por que? Ah, porque o moço da rua pode não gostar. Por que? Porque ele não acha engraçado como a gente acha. Por que? Porque ele não te conhece, não é seu amigo. Por que? Porque ele é estranho, e por isso você não dever dar trela pra ele. Por que? Porque... cadê o tim-tim? Vamos fazer um tim-tim?
Nesse Carnaval, dei vários tim-tins de língua. Foi a maior esbórnia.
Acho importante ensinar boas maneiras. Comer de boca fechada, manejar bem os talheres, juntá-los depois no prato antes de limpar a boca e tirar delicadamente o guardanapo do colo. O problema é que ensinar isso a uma criança de três anos é difícil, porque pode ser difícil ensinar qualquer coisa a uma criança por mais de dez minutos. Ou segundos. Então a gente se diverte. Faz piquenique para servir os bonecos com maestria, colocando toalha bordada e um pratinho para cada um com uvas, bananas e morangos, ensina todo mundo a usar o guardanapo, convida o amigo do amigo e, pra comemorar a produção toda, faz tim-tim com os copos. Tim-tim!
Fazer tim-tim agradou muito. O pessoal todo, da Jessie à Cinderela, do Buzz ao Mickey, achou essa coisa de tim-tim muito divertida. Começamos a fazer tim-tim também de picolé, de maçãs, de milho cozido, de revistinha, de chave, de computador, de... língua. Ah, sim, é difícil ensinar que dar língua, o que é muito engraçado, deve ser feito só de mentirinha, em casa, com os pais. Por que? Ah, porque o moço da rua pode não gostar. Por que? Porque ele não acha engraçado como a gente acha. Por que? Porque ele não te conhece, não é seu amigo. Por que? Porque ele é estranho, e por isso você não dever dar trela pra ele. Por que? Porque... cadê o tim-tim? Vamos fazer um tim-tim?
Nesse Carnaval, dei vários tim-tins de língua. Foi a maior esbórnia.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
A culpa e a tireoide
"Se você tem um problema na tireoide, a culpa é sua?", ele perguntou assim como quem fala com uma criança que acabou de pedir desculpas e sair acabrunhada do castigo. Castigo, não, cadeirinha do pensamento, ou melhor, da reflexão, porque senão pensamento fica parecendo castigo, então é melhor refletir. Acenei que não com a cabeça, não tive coragem de verbalizar. Vergonha alheia às vezes é maior do que a própria vergonha que, aliás, surpreendentemente, inexistia naquele momento. "Então. Se você tem algum problema na cabeça (não lembro se ele falou cérebro ou cabeça), também não é culpa sua", e continuou a apresentação, bem didática, feita especialmente para idiotas. Foi aí que comecei a pensar que, bom, talvez eu seja idiota e mereça estar ouvindo uma apresentação dessas. Quer saber? Talvez eu tenha culpa, sim. "Tenho culpa sim, doutor". "Por que você acha isso? Estamos falando de uma doença, que acomete qualquer um". Não, querido, eu tenho culpa, não da tireoide, mas da cabeça que lateja. Ela não é minha? Então. Ou tem alguma coisa lá dentro que a faz latejar? Lateja em baixo, perto da nuca, depois passa pelo zumbido no ouvido direito e vai parar a latejação entre as sobrancelhas. Sabia, doutor, que só há pouco tempo aprendi que se escreve sobrancelha ao invés de sombrancelha? Não é minha culpa? É que eu sempre pensava em sombra, sabe? A sombrancelha fazendo sombra para os olhos, protegendo do sol e da poeira etc, mas principalmente protegendo do mundo mesmo. "Por que você acha que tem que se proteger do mundo? ". Olha, doutor, o senhor me desculpe, o senhor é letrado e tal, mas essa pergunta é muito boba, não tem nem como responder. Nem a tireoide encara o mundo de frente, doutor. Se não é sombrancelha o que ela tem é alguma viseira qualquer, um óculos escuros, uma burka, sei lá, qualquer coisa. A seco, de cara limpa, ninguém aguenta."Há quanto tempo você pensa assim?" Como assim? Uai, desde sempre, devo pensar assim desde que nasci, é que não lembro. Pergunta mais estranha. Olha, me desculpe, mas tenho que dizer que estou meio decepcionada, tinha o senhor em mais, como dizer, alta estima. Acho que essa consulta foi um erro. Foi bom ter te conhecido, um prazer, seu consultório é muito bonito apesar de não ter janela e nem um quadro sequer e a sala de espera parecer um intervalo do nada pintado de verde claro, e não pensa que não reparei que a minha cadeira é mais baixa que a sua, esse recurso é batido, e não tem nada na sua mesa, não é? Nem um porta-retrato, uma caneta, um post it escrito Vai à merda, nada, tudo muito asséptico, muito bonito mesmo. Um brinco. "Olha, preciso fazer uma prescrição pra você". Só se for para a tireoide da sua mãe, meu filho. Porque eu tenho culpa sim e vou expiá-la lá fora, no mundo sem bula e sem sombrancelhas. Oi? Não, não, não tem ninguém pra me buscar não, eu vou sozinha mesmo, mas eu gosto, assim não preciso me preocupar com a tireoide de ninguém, mas pode deixar que vou pagar a consulta, deixo um cheque lá com a sua secretária maquiada. Agora preciso ir, muito obrigada por todas as explicações, entendi muito sobre neurônios e sinapses, queria ter ainda aprendido mais sobre a tireoide, mas mesmo assim foi tudo muito proveitoso, e estou falando isso porque sou muito educada mesmo latejante. Pra quem? Não, não tem ninguém pra ligar não, agora estou perdendo um pouco a paciência apesar de ser muito educada, entende? O que é agora? Vai me prender numa camisa-de-força linda e lânguida, verde-clarinha? E a tireoide, como ficaria? E a tireoide, hein, doutor? Você já pensou em como ela se sentiria? VOCÊ JÁ PENSOU NA POBRE DA TIREOIDE?
quinta-feira, 19 de março de 2015
segunda-feira, 9 de março de 2015
Quarenta, eu?
Pensei em descalabro, sei lá porquê. Eu já sei de tão poucas coisas que não vou me preocupar com a origem desse descalabro aqui. Quero descalabrar alguns enlatados internos. Meus 40 anos, por exemplo. Falta um mês.
Aos 40 anos, eu queria estar no topo do mundo. Ser poliglota, ter viajado por todos os continentes e saber fazer a melhor bruschetta do planeta – de preferência evitando rimas infantis. Saber cozinhar arroz tailandês e dosar bem o açafrão. Saber escolher vinho, receber, fazer imposto de renda. Aos 40 eu também já teria uma casa com quintal, onde a minha filha poderia criar um cachorro. Já tenho a filha. Falta a casa e o cachorro.
Já plantei uma árvore (um pinheiro, na verdade) e escrevi mais de um livro. Juntando com a filha, era para eu estar satisfeita e sacar a minha carteirinha de adulta no consultório da analista, mas a criança continua aqui, pulando num pé só. Agora, só porque eu falei isso, ela está pulando com os dois.
Criança não gosta muito de responsabilidades. Quer dizer, não na hora errada, que é aquela em que se quer fazer outra coisa. E é difícil conciliar a hora em que se quer fazer alguma coisa com a hora em que se deve, por coincidência, fazer essa mesma coisa que se quer fazer. Sim, é difícil de entender pra mim também. Eu ainda não tenho 40 anos.
Agora, por exemplo, eu quero apenas que o mundo seja menos chato. Que tenha menos contas para pagar, menos horários a cumprir, menos eletrodomésticos quebrados e mais caixas eletrônicos. Queria ter um caixa eletrônico embaixo da minha cama. Queria dormir e acordar com o dinheiro na cabeceira, na conta certa, sem precisar de troco. Eu nunca mais esqueceria de pagar a diarista, por exemplo. Estou pedindo muito?
Ouvi dizer que a vida começa aos 40. É mentira. Aos 40 a gente começa a morrer, e isso porque a ideia da morte sai debaixo do caixa eletrônico e se esconde no travesseiro recebendo a guarida do exército de ácaros, porque você ainda não chegou na idade de aceitar aquelas capas antialérgicas que transformam o travesseiro num tijolo. Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer, entende a espuma, mesmo na voz abafada pelo lençol. Sim, querida, vamos todos, você grita dormindo. Mas quando nasce um filho a gente morre mais. Com mais intensidade, e mais rápido também. Então, aos 40, a vida se torna uma corrida contra o tempo.
Se não dei certo até agora como escritora ou bailarina, já era. Se não fiz aquela apresentação de sapateado inspirada no Gregory Hine de O sol da meia noite, já era. Se não aprendi andar a cavalo, lá lá lá lá lá. Minha lombar, a essa altura destruída, geme só de pensar na ideia. Esquiar então dá vontade de rir. E quem ri, dessa vez, são os joelhos.
Há uma velha ao meu lado. É estranho, porque ela se parece comigo. Vivo dizendo para ela endireitar os ombros e relaxar o pescoço, mas acho que ela já não escuta mais. Vive curvadinha, com os pensamentos enrugados e mãos paralisadas ante o teclado. Ela quer escrever alguma coisa, talvez algo sobre essa corrida boba contra o tempo, mas obviamente não consegue. Pergunto se ela quer ajuda e relembro que ela não escuta. Gesticulo, então, e ela apenas me olha com olhos turvos. Em algum momento do passado ela quis me falar alguma coisa, provavelmente algo sobre o tempo que se perde correndo contra o tempo. Mas ela cansou e hoje não quer falar mais nada.
Eu devia tê-la escutado antes.
Pensei em descalabro, sei lá porquê. Eu já sei de tão poucas coisas que não vou me preocupar com a origem desse descalabro aqui. Quero descalabrar alguns enlatados internos. Meus 40 anos, por exemplo. Falta um mês.
Aos 40 anos, eu queria estar no topo do mundo. Ser poliglota, ter viajado por todos os continentes e saber fazer a melhor bruschetta do planeta – de preferência evitando rimas infantis. Saber cozinhar arroz tailandês e dosar bem o açafrão. Saber escolher vinho, receber, fazer imposto de renda. Aos 40 eu também já teria uma casa com quintal, onde a minha filha poderia criar um cachorro. Já tenho a filha. Falta a casa e o cachorro.
Já plantei uma árvore (um pinheiro, na verdade) e escrevi mais de um livro. Juntando com a filha, era para eu estar satisfeita e sacar a minha carteirinha de adulta no consultório da analista, mas a criança continua aqui, pulando num pé só. Agora, só porque eu falei isso, ela está pulando com os dois.
Criança não gosta muito de responsabilidades. Quer dizer, não na hora errada, que é aquela em que se quer fazer outra coisa. E é difícil conciliar a hora em que se quer fazer alguma coisa com a hora em que se deve, por coincidência, fazer essa mesma coisa que se quer fazer. Sim, é difícil de entender pra mim também. Eu ainda não tenho 40 anos.
Agora, por exemplo, eu quero apenas que o mundo seja menos chato. Que tenha menos contas para pagar, menos horários a cumprir, menos eletrodomésticos quebrados e mais caixas eletrônicos. Queria ter um caixa eletrônico embaixo da minha cama. Queria dormir e acordar com o dinheiro na cabeceira, na conta certa, sem precisar de troco. Eu nunca mais esqueceria de pagar a diarista, por exemplo. Estou pedindo muito?
Ouvi dizer que a vida começa aos 40. É mentira. Aos 40 a gente começa a morrer, e isso porque a ideia da morte sai debaixo do caixa eletrônico e se esconde no travesseiro recebendo a guarida do exército de ácaros, porque você ainda não chegou na idade de aceitar aquelas capas antialérgicas que transformam o travesseiro num tijolo. Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer, entende a espuma, mesmo na voz abafada pelo lençol. Sim, querida, vamos todos, você grita dormindo. Mas quando nasce um filho a gente morre mais. Com mais intensidade, e mais rápido também. Então, aos 40, a vida se torna uma corrida contra o tempo.
Se não dei certo até agora como escritora ou bailarina, já era. Se não fiz aquela apresentação de sapateado inspirada no Gregory Hine de O sol da meia noite, já era. Se não aprendi andar a cavalo, lá lá lá lá lá. Minha lombar, a essa altura destruída, geme só de pensar na ideia. Esquiar então dá vontade de rir. E quem ri, dessa vez, são os joelhos.
Há uma velha ao meu lado. É estranho, porque ela se parece comigo. Vivo dizendo para ela endireitar os ombros e relaxar o pescoço, mas acho que ela já não escuta mais. Vive curvadinha, com os pensamentos enrugados e mãos paralisadas ante o teclado. Ela quer escrever alguma coisa, talvez algo sobre essa corrida boba contra o tempo, mas obviamente não consegue. Pergunto se ela quer ajuda e relembro que ela não escuta. Gesticulo, então, e ela apenas me olha com olhos turvos. Em algum momento do passado ela quis me falar alguma coisa, provavelmente algo sobre o tempo que se perde correndo contra o tempo. Mas ela cansou e hoje não quer falar mais nada.
Eu devia tê-la escutado antes.
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Inhotim tem um andar sincopado. Traz uma pausa aos passos e passos à pausa. Mistura arte botânica com arte contemporânea, bromélias com esculturas, caminhos e fissuras. São 110 hectares, a gente logo aprende. 10 mil metros quadrados de espaço mágico. Espaço suficiente para entender o que Heidegger quer dizer com... espaço: o próprio espaço em si é o abrir espaço, é dar fôlego e licença para a concretude e, consequentemente, para a nossa relação com o mundo. Em Inhotim caminha-se muito. Heidegger diz: Viver é caminhar. Sincopadamente.
Inhotim, Brumadinho, BH.
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Entre Homero, tijolos e azulejos
"Ah, vai ler Homero!", disse a professora, e a icônica frase acabou batizando, no whatsapp, um grupo de conversa dos alunos. Tempos modernos. Era um desabafo, a frase, um desencanto com a juventude que só conversa via multiplataformas eletrônicas, olhos grudados no celular, dedos ágeis e distraídos deslizando pela tela. Mas era também um comando e, apesar de já ter me distanciado das gerações z, y e de outras cujo alfabeto provavelmente nem conheço, obedeci o timbre imperativo. Comprei a edição recomendada da Odisseia e me aventurei pela jornada de Odisseu.
O ímpeto venturoso, no entanto, durou pouco mais de dez páginas. Ainda no Canto I me perdi na cólera de Posido, não sabia mais quem era Orestes, quem Hermes, ou quem fora gerado pela ninfa Toosa, filha de Forco, e, principalmente, quem queria se vingar de quem e porquê. Apesar de me sentir envolta numa espécie de bruma melodiosa que a literatura contemporânea desconhece, por ora precisei, infelizmente, abandonar a nau.
Não é culpa de Homero, é claro. Talvez a culpada seja a minha memória, deficiente desde que inventaram o google, o gravador digital, os aplicativos de notas e lembretes e até mesmo o whatsapp. McLuhan não poderia estar mais certo: a tecnologia digital é, sim, ao mesmo tempo, uma extensão e um aniquilamento de nossos sentidos e capacidades. Lembro de que, na pré-adolescência, sabia o telefone de todos os meus amigos de cor. Era outra, certamente, a minha memória, sem a flacidez dos neurônios atuais ¬– esses que, a fórceps, nascem para o whatsapp e afins.
Acabrunhada, paro a leitura e saco da bolsa ele, o senhor dos tempos, o aparelho móvel indispensável. Passo os dedos pelas fotos. Uma delas, tirada numa loja de móveis por pura atração estética, parece querer me dizer alguma coisa.
Sim, há tijolos dispostos nas prateleiras. Como livros esperando por um encontro, eles habitam o espaço com naturalidade. E escrevo habitam porque pesquiso, no google, a etimologia da palavra decorar. Descubro que nela está presente a palavra grega "doxa": senso comum, opinião, doutrina. Paráfrase, também, vejo no meu caderno: reescritura, tradução na própria língua. Os tijolos estão ali para serem lidos, seguidos e coabitados em nossa rede de (in) certezas. Eles decoram e explicam a contemporaneidade avessa à Odisseia. Eles nos habitam e nos doutrinam.
Há um cheiro de abstrato nesse concreto exaltado. Se folheados, os tijolos não nos contarão tramas de deuses e mortais embrumados em melodia poética brilhante, mas nos dirão muito, por exemplo, sobre Descartes. Se no mundo grego os deuses convivem com os homens e, logo, não há nada que seja sobrenatural (não há nada que não faça parte da natureza), no mundo cartesiano e pós-cartesiano, se é que se pode dizer assim, não há nada que não seja matéria nem pensamento, nada que recupere a cisão entre homem e mundo. Sem prateleiras para o que não vem da razão.
Nada, nem mesmo os tijolos, estão sujeitos ao devir. E por isso mesmo, talvez, eles precisem mudar de lugar. Quando tudo parece tão cimentado, a parede sente vontade de virar do avesso e mostrar seus bastidores. Escrutinamos o tijolo por pura falta de alternativas ou porque na argila também estejam, queimados no forno industrial, nossos paradigmas. O mais profundo é a pele.
Passamos do homérico mundo circular do devir, sujeito sempre ao movimento de vir a ser, ciclo de nascimento e morte eterno, ao mundo do ser já fixado, emassado, construído ¬– finito. É essa marca da mortalidade do ser e do mundo que escorrega para as prateleiras ao menor descuido. Gestos artísticos, é o que parece, são resistentes ao cimento do indefinido.
É sabido que, depois de Descartes, a razão científica foi colada à experiência de tal modo que se tornou empírica. Mas não deixou de ser abstrata. O dinheiro e o H2O da água são abstrações reais, lembra Marx, pra quem a ciência moderna talvez não tivesse sido possível sem o capitalismo. Vivemos abstrações encarnadas num mundo sequestrado pela mecânica e é por isso que, mesmo acariciando a parede com as mãos como as crianças fazem com propriedade, não conhecemos a parede. Também deve ser por isso que a minha filha de dois anos, com alguma frequência, tenta literalmente entrar nos seus livros abertos no chão, pisando neles e encaixando os pés dentro das páginas. Respeito o momento. Entendo a necessidade latente, hoje, de entrar em algum mundo, qualquer um, já que estamos sempre do lado de fora, do lugar de quem olha de longe e engole uma explicação – geralmente científica. Prefiro que o mundo escolhido por ela seja o da literatura. Há os que preferem entrar na igreja, por exemplo. É mais fácil caminhar lá dentro. Estão escondidos os tijolos.
O mundo moderno brigou com Homero. Sentiu-se ameaçado por sua força luzente e rompeu com o ser e com o real. Adotou a ideia tornando-se assim platônico, desistindo de encarnar qualquer realidade concreta ameaçadora como as grandes naus. Entre a verdade e o saber já fora criado um abismo pelos romanos, levados a adaptar seu realismo ao cristianismo. O real, assim, não está mais no ser, imantado como na voz de Homero, entoada capaz de abraçar o mundo. Mas talvez, arrisco pensar, ele esteja no tijolo.
No lugar da poesia de Homero, aquela que, define Heidegger, "é a poesia que permite ao homem habitar a sua essência", ficou a linguagem-instrumento, incapaz, por isso mesmo, de produzir uma Odisseia. A linguagem, em Homero, não tinha um objetivo: era um fim (e um universo) em si mesma.
Mas a linguagem é a senhora do homem, diz Heidegger. É nela que se dispõem tijolos e documentos "suculentos" – essa foi outra expressão anotada na aula, mas que não virou título de grupo de whatsapp. Documentos são vivos e suculentos porque, quando palavras são compartilhadas, elas se tornam realidade. Há toda outra humanidade em laivos, estilhaços e clarões de um mundo que já se foi. Lembrei imediatamente dos quadros de Adriana Varejão, das carnes de azulejo:
Azulejaria em carne viva, 1999, óleo sobre tela e poliuretano em suporte de alumínio e madeira.
Quando a linguagem não dá conta do real ela excede o homem e atravessa paredes. Azulejo mole, carne dura, tanto bate até que fura. Então o azulejo escancara a boca e grita: carne viva também é arte. A carne pesa, a pele rasga, a parede se abre: surgem novos espaços, outros dentros, antessalas da superfície, gula do olhar. Nos trabalhos de Varejão, os documentos são suculentos. Nos tijolos dispostos nas prateleiras, o concreto é abstrato.
Nesse teatro em que o homem reconta a sua história com tijolos, azulejos e carnes está, intuo em atitude metafísica, a poiesis moderna, carregada de permanência e infinita enquanto dura. Quando a palavra não consegue mais dar conta do real, não é porque a realidade cresceu. A própria palavra, imersa na comunicação funcional, é que ficou menor. Grande só a poesia, capaz de levar o homem a habitar poeticamente o mundo. E talvez por isso seja tão difícil adentrá-la.
É construindo que o homem habita, lembra Heidegger, desenhando a quadratura desse habitar que é, ao mesmo tempo, ser : céu / terra / deuses / mortais. Não somos corpos encapsulados e no homem também vive o extraordinário, o divino, a centelha capaz de fazer brotar tijolos em prateleiras ou carnes em azulejos. No homem ainda vive Homero, imortalizado pela poesia, esperando pelo bom combate, pelo AGON, luta pela excelência que virou luta da alma e hoje parece apenas agonia medicada. É recomendado que estejam fora das prateleiras as tragédias ou qualquer outra coisa que escape ao nosso desejo racional de controle.
Ainda assim, mesmo a tragédia traz sempre o horror por meio da palavra. Não vemos Édipo furar seus olhos, por exemplo. Catástrofe e catarse só existem através da linguagem. "O poeta lava a violência com a palavra", anotei também em sala, sublinhando duas vezes a frase. Por isso Homero, cego, vê a pura imagem e a poiesis, para os gregos, é sempre menor do que a obra deixada por ela.
Compreendida a diferença de mundos, tenho profunda inveja de quem lê Homero. Empurrada por Nietzsche para a agonia, (AGO ¬– empurrar, incitar), pretendo fazer dessa inveja o motor para a conquista da leitura de Odisseia. Mesmo que o grupo do whatsapp acabe, seu título ainda vai estar lá. Pensar, como bem disse Heidegger, é agradecer.
Referências bibliográficas
Odisseia / Homero ; tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
Varejão, Adriana. Adriana Varejão: entre carnes e mares = between flesh and oceans / Adriana Varejão; (org. Isabel Diegues; versão para o inglês Stephen Berg). Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.
Heidegger, Martin, 1889-1976. Ensaios e conferências I Martin Heidegger; Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Foge], Marcia Sá Cavalcante Schuback.- 8. ed. -Petrópolis: Vozes; BragançaPaulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. (Coleção Pensamento Humano)
Nietzsche, Friedrich Whilhelm. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. RJ: Sete Letras.
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